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Epidemia do craque

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Os metrossexuais não desfilam apenas nas metrópoles do Sudeste. Graças ao craque do Santos, luzes, gel, moicano e topetes estão nas cabeças de todos os tipos de brasileiros, como prova um salão de beleza de Belém

Pele escura e cabelos cuidadosamente espetados e descoloridos. Bigodes e barbichas bem aparados, costeletas desenhadas. Tem algo diferente nos meninos do Brasil, e digo isso tomando como amostra Belém, no Pará. Por lá é rara cabeleira jovem que não seja ornada com estilo. Instigada por essa estética fui parar num salão de beleza masculino em Jurunas, bairro mais populoso (e popular) da capital paraense. Aberto há quatro anos, especializado em cortes diferenciados ao preço de R$7, o Nosso Salão viu o movimento subir depois que Neymar e suas variações do moicano afundaram de vez com o preconceito de que homem não pode ser vaidoso e ousado. Lá os meninos, inspirados pelo ídolo, gastam seus trocados para terem seus pelos raspados com precisão, ficam horas com touca térmica e muitas vezes têm que fazer fila para serem atendidos e transformados em galãs.

 

 


May East

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De musa da banda de new wave Gang 90 a ativista que luta pela transformação das metrópoles, May East não apenas defende, como encarna um mundo em transição: “Nós estamos fazendo um duplo papel, somos enfermeiros de uma civilização obsoleta e parteiros de uma nova forma de viver”

“Eu, na verdade, sou bem camaleônica”, afirma May East. E seu currículo tem vários pontos que provam a veracidade de sua declaração: capacidade de se adaptar e se modificar em diferentes condições e contextos; um amplo campo de visão que a mantém por dentro de tudo; ou o fato de ter literalmente morado em um barril de uísque por 14 anos. De vocalista e musa da seminal banda de new wave Gang 90 & as Absurdettes até ativista premiada pela ONU, May já passou por várias transições ao longo de sua carreira. “Eu nunca me identifiquei só com uma turma ou só com uma forma de ser.”

A voz da paulistana de 55 anos que sai do Skype – direto da Escócia, onde vive hoje – começa a contar sobre o início de sua carreira musical: “Não lembro muito bem da linearidade dos acontecimentos dessa época, não conto muito essa história”. Foi por volta da década de 80 que ela, o jornalista Julio Barroso e o produtor Nelson Motta criaram um novo conceito para a música brasileira: o iê-iê-iê antropofágico, que trazia o new wave estrangeiro ao país e lhe dava um toque tropicalista. “Foi um momento incrível. Nós abrimos juntos um nightclub chamado Pauliceia Desvairada, que era promovido pelo Nelsinho e sua turma. A Gang nasceu para o mundo nesse nightclub. Tinha toda uma nova geração emergindo conosco.”

A banda, que teve ainda entre seus integrantes a holandesa Alice Pink Punk e Lonita Renaux, explodiu depois de ganhar o Festival Shell, em 1981, com a música “Perdidos na selva” (“Eu e minha gata/ rolando na relva/ rolava de tudo/covil de piratas pirados/perdidos na selva”). Dois anos depois, se tornou um “fenômeno brasileiro”, como May gosta de dizer, quando foi escolhida para abrir a novela Louco amor, da Globo, em 1983, com a música de mesmo nome (“Nosso louco amor/ está em seu olhar/ quando o adeus/ vem nos acompanhar”). Para o crítico musical Arthur Dapieve, “a Gang 90 foi a primeira banda do rock dos anos 80 a botar a cabeça para fora na grande mídia. Ela ainda parecia à frente do seu tempo, porque os outros concorrentes eram mais ligados à ‘velha’ MPB”. O DJ Kid Vinil, amigo e ex-parceiro musical, resume a importância de May no grupo: “Ela foi a que mais se destacou das Absurdettes, era a figura central depois do Julio, além de ser uma sex symbol, uma das mulheres mais bonitas da safra dos grupos da época, a vocalista cobiçada”.

Foi Julio Barroso quem incentivou Maria Elisa Capparelli Pinheiro – já rebatizada como May East – a se expressar no palco por meio da voz. “Ele estimulava as pessoas das formas mais inovadoras”, ela conta. E então May percebeu que podia ser mais do que uma “criadora de ideias musicais”; tornou-se uma “artivista”, como ela mesma se descreve, unindo artes plásticas, música e vídeo para se expressar. Não demorou muito para que ela abandonasse a Gang e se arriscasse em carreira solo. Por um motivo trágico, a banda também não durou muito. Um ano depois do lançamento de seu primeiro disco, Essa tal de Gang 90 & as Absurdettes, Julio Barroso morreu ao cair do 11º andar de seu prédio, em 1984; até hoje não se sabe se foi acidente ou suicídio, mas com certeza foi uma das maiores, e mais precoces, perdas do rock brasileiro. A banda ainda lançou dois discos com outra formação, mas nunca teve o mesmo reconhecimento.

E lá foi May, estrada afora do Brasil, em busca da riqueza rítmica e melódica do interior do país. Ela inovou mais uma vez com uma mistura de som eletrônico e acústico, rara até aquele momento, que deu corpo ao seu primeiro disco, Remota batucada. “Quando os DJs recebiam a minha música, eles não sabiam onde pôr, porque não era MPB, não era rock, não existia o termo world music. Eu acabei ficando meio que sem turma, porque eu já não era mais da turma da Blitz, do Leo Jaime, do RPM.”

Foi nessa época que uma gravadora inglesa descobriu sua música eletrônica e a chamou para fazer shows lá fora.

Arquivo Pessoal/ Miguel Barella

May em curso da Educação Gaia, no Rio, 2010

May em curso da Educação Gaia, no Rio, 2010

Tabaporã, seu disco seguinte, era dedicado à aliança entre os povos das florestas, índios e seringueiros. Em sincronia, as primeiras imagens de satélite mostrando a floresta amazônica em chamas vieram a público. Tiro e queda: ONGs e governos se voltaram para a questão das florestas tropicais, e foram atrás da artivista brasileira. “Foi aí que eu encontrei minha turma.” May assumiu a direção do Gaia Arts, ramo da instituição internacional Gaia Foundation, responsável por organizar grandes eventos que contavam com a presença de outros artivistas, ecologistas e dos chamados povos tradicionais.

De férias, em 92, decidiu descansar na ecovila de Findhorn, na Escócia. Ela se encantou pelo projeto da comunidade, que incluía geração de energia renovável, produção de alimentos orgânicos e consumo reduzido ao mínimo, entre outros princípios. Lá May conheceu Craig Gibsone, diretor de Findhorn que acabaria se tornando seu companheiro e pai das suas filhas. E o que era pra ser uma turnê de seis meses fora do Brasil acabou se transformando em 18 anos. Hoje May vive em uma casa ecologicamente inteligente, depois de morar 14 anos em um barril reciclado, onde antes eram estocados 600 litros de whisky.

Pouco deposi de chegar à ecovila, May resolveu se dividir entre o experimento de Findhorn e um trabalho com a ONU, que começou quando ela foi convidada a reunir contribuições de artistas para a Rio Eco 92. Como resultado, a ecovila recebeu prêmios da UN Habitat (Programa das Nações Unidas para Assentamentos Humanos) e, em 2006, se tornou um espaço oficial de treinamento da ONU.

Ela acredita que “o destino da humanidade e da biosfera vai ser decidido nas grandes cidades”. Com essa convicção, May conheceu o projeto Cidades em Transição (Transition Towns), dois anos atrás, e partiu para sua sede em Totnes, na Inglaterra, para fazer um treinamento que dissemina metodologias sociais que podem ser replicadas em diferentes bairros do mundo. “Hoje 51% da humanidade mora nas cidades, que cobrem apenas 2% da superfície terrestre e consomem 75% dos recursos naturais. As cidades são ‘glutonas’: pegam recursos naturais, comida e nutrientes e soltam poluição, lixo etc. E lixo é coisa certa no lugar errado. O que a gente faz é ensinar os estudantes a arredondar esse processo.” Transition Towns complementa outro projeto dirigido por May chamado Educação Gaia – que ensina a observar aspectos de cidades, sociedades e organizações insustentáveis e dar a elas ferramentas de observação e de redesenho da presença humana.

A linha comum que ligou a carreira no rock até os muitos trabalhos de ativação e sensibilização de governos permite que May tenha uma clara visão sobre o caminho que a sociedade está tomando. “Já está havendo uma transição. Ou seremos os desenhistas ou seremos as vítimas dela.” Para May, todas essas manifestações e mobilizações que têm acontecido pelo mundo são “forças das enchentes da primavera” que você não tem como segurar. “E sinto que muitos de nós estão fazendo um duplo papel: somos enfermeiros de uma civilização obsoleta e parteiros de uma nova forma de viver que emerge. Não adianta mais continuar apenas alimentando um sistema que já está na UTI há alguns anos, temos que voltar a atenção para o novo” – algo que May tem feito há três décadas, camaleonicamente.

Arquivo Pessoal/ Miguel Barella

ela recebe delegações oficiais da Coréia e Vietnã na ecovila de Findhorn, Escócia; ao fundo, as casas de barril

ela recebe delegações oficiais da Coréia e Vietnã na ecovila de Findhorn, Escócia; ao fundo, as casas de barril

 

A MULHER QUE VEIO DO ESPAÇO 
Por Eduardo Logullo*

Volta lá no início dos anos 80. Conheci a figura cyberblonde de May East quando ela já integrava a Gang 90, trupe musical inventada por Julio Barroso em Nova York. Ela era uma das Absurdettes – o trio vocal feminino mais surreal que o rock brasileiro viu (e jamais verá outro assim). Fazia pouco que Maria Elisa saíra do casamento com um herdeiro da família Simonsen. O rosto que brilhava em colunas sociais, filha de piloto veterano de voos internacionais, deu uma guinada no visual e nas apostas de vida. Logo seria outra: seu batismo artístico surgiu por morar no East Side nova-iorquino, enquanto o restante da banda ficava no West Side. Assim, despontava o grupo que citava Tzara, Nietzsche e Xangô.

May East, depois da morte de Julio em 1984, radicalizou de vez ao seguir carreira solo de cantora, compositora e performer. Que mulher era aquela, vestida com saia havaiana de palha, maiô iugoslavo, colar de letras de plástico, escarpins brancos e maquiagem tribal? Quem era aquela aquariana louca que se apresentava entre tumbadoras, maracas, tapetes persas, sintetizadores, teremins e flechas? Parecia uma visitante espacial.

Conclusão, apenas uma. O seu trabalho estava 20 anos à frente de seu tempo. Hoje é corriqueiro misturar causas indígenas, meio ambiente, minorias étnicas, tecnologias, sincretismos e propostas comportamentais utópicas. No fim de uma década em que se descobria o consumismo e o discurso yuppie não. Era arrojado demais. May East foi como um disco voador sobrevoando a musica brasileira. Causou impacto. Seu nome e suas batucadas eletrônicas continuam referência do novo. E viva o futuro.

*Eduardo Logullo, jornalista, foi produtor de May East nos anos 80

 

Leitor de estimação

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Rodrigo Paes decorou seu apartamento inspirando-se na TRIP. Pintou uma praia na sala, cobriu o armário com fotos de Trip Girls e, sabe-se lá por quê, mandou-nos uma foto sua vestido de pirata. Funcionou: resolvemos tocar sua campainha

Era apenas uma tarde ordinária na redação quando um e-mail brotou em nossa caixa de entrada:

De: Rodrigo Paes / Para: redacao@trip.com.br
Enviado: Quarta-feira, 26 de maio, 2010 
Assunto: Apê inspirado na Trip

Em anexo, quase 20 fotos revelando cada canto e objeto do idiossincrático apartamento do autor da mensagem. As paredes da sala e o teto eram preenchidos por uma pintura simulando uma paisagem praiana. Separando o cômodo da cozinha, havia um portal feito de pedras lapidadas – uma delas em forma de golfinho. Embaixo da pia, Trip Girls revestiam as portas do armário. O grand finale era uma foto do próprio Rodrigo posando de pirata em sua “praia” particular. Desde esse dia, nunca mais esquecemos do bucaneiro (como ele foi batizado pela Redação), que graças a sua brilhante missiva eletrônica virou um leitor de estimação do pessoal daqui.

Apesar disso tudo, só agora, mais de um ano depois, resolvemos visitá-lo. Mesmo às 8h de uma segunda-feira, o Bucaneiro mostrou-se cordial, nos recebendo com croissants e suco de uva. Descobrimos que ele tem 37 anos e, na verdade, é engenheiro de computação e síndico do prédio. Para nosso deleite, seu apartamento continua exatamente igual: a praia (“Quem fez foi o mesmo cara que pintou o Parque da Mônica”) e o armário (“A Luize Altenhofen é a minha preferida”) ainda estavam lá. “Pode até parecer a Disney, mas pelo menos fiz uma coisa mais lúdica, diferente da decoração clean e pasteurizada que impera hoje em dia.”

Nosso personagem, contudo, estava à paisana, sem a fantasia que nos cativou. Mas foi só pedir que a versão bucaneira apareceu. Rodrigo, descreva para a gente o leitor da Trip: “É um cara aventureiro, que vive em cidade grande, gosta de arte... e que o pessoal no trabalho acha que é maluco. É um cara tipo eu”, ele responde.

 

Asstrology

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Jacqueline Stallone é mãe do Rambo, foi astróloga da princesa Diana e do governo soviético, previu a queda do Muro de Berlim e é especialista em rumpologia:a leitura de bundas. Aos 90 anos, cobra US$ 600 para analisar um par de nádegas. Sem mais

 

Ela foi trapezista, dançarina de cabaré, atriz e cabeleireira. Isso antes de virar astróloga e acumular clientes como a princesa Diana, o rei Hussein da Jordânia, o ex-presidente George Bush pai, entre outros. Jacqueline Stallone, segundo ela própria, foi ainda a astróloga oficial do governo da antiga União Soviética e previu, entre tantos outros eventos, a queda do Muro de Berlim, o sucesso de seu filho Silvester Stallone (sim, ela é mãe do cara), o caso O.J. Simpson e as vitórias nas urnas de Tony Blair e George Bush filho (no segundo caso, teria cravado com antecedência até o número de votos de vantagem). Jackie é ainda a maior especialista mundial em Rumpologia, a arte de ler bundas. O princípio é o mesmo da leitura de mãos, mas nesse caso o profissional, em vez de analisar linhas e ondulações das palmas das mãos, analisa o formato das nádegas, tamanho do cofrinho, acúmulo de pelos etc.

Aos eventuais incrédulos, o filho famoso afirma: “A verdade é a única coisa que interessa a minha mãe, e contar sempre a verdade é a única coisa que ela sabe fazer”, diz o ex-Rocky, o Lutador. Aos 90 anos recém-completados, mama Stallone vive confortavelmente em Santa Monica, faturando com a lojinha de produtos esotéricos de seu site. A leitura completa de bunda (duas bandas) sai por US$ 600, mas há artigos ou serviços mais em conta. A série Exploring the zodiac, com 12 DVDs, sai a US$ 19,95 o signo. O mapa astral custa US$ 500 e o livro Starpower, US$ 24,95. Consultas astrológicas personalizadas por telefone variam de US$ 600 (15 minutos) a US$ 1.500 (uma hora). Tentamos falar com a senhora Stallone sobre tudo isso, mas a resposta ao nosso e-mail solicitando uma entrevista foi: “Muito obrigada pelo seu interesse, mas, se eu desse entrevistas grátis, passaria o dia fazendo isso. Quanto você pode me pagar pelas informações?”.

Vai lá (mesmo!): www.jacquelinestallone.com

 

Mamãe eu quero

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Ardilles Rante/ Barcrof Media/ Getty Images

O bebê fumante

O bebê fumante

Aldi Suganda Rizal é famoso. Se o nome não soa familiar, talvez o apelido ajude: o bebê fumante. Falamos com a mãe do pequeno para saber como ele está dois anos após o vídeo que o deixou mundialmente conhecido

O vídeo é rápido, dura pouco mais de um minuto. Nele, um bebê bem gordinho fuma cigarros bem maiores do que as próprias mãos. Faz isso com estilo, brincando com a fumaça que solta pela boca. Diante dos olhos dos pais, acende um cigarro no outro e segue fumando sem intervalo. Foi o suficiente pra tornar o pequeno indonésio Aldi Suganda Rizal, na época com 2 anos de idade, famoso no mundo todo. Afinal, eram até quatro maços por dia sendo tragados por um bebê.

Resultado: rehab aos 2 anos. Aldi recebeu do governo da Indonésia um tratamento de três meses em uma clínica na capital, Jacarta. “Ele teve sorte de conseguir ajuda profissional de um psicólogo infantil muito conhecido no país, que inclusive apresentou um programa para crianças por muitos anos na televisão”, conta Diana, mãe de Aldi, por telefone. E funcionou? “Ele não deixou de fumar totalmente, mas graças à terapia o número de cigarros diminuiu muito. Aldi diz que sente a boca amarga quando não fuma. Não consigo acalmar meu próprio filho, já não sei o que fazer.”

Segundo a mãe, Aldi ainda não consegue controlar a vontade de fumar. “Ele chega a se machucar quando está pedindo um cigarro. Às vezes dá cabeçadas na parede.” Isso aos 4 anos de idade. Se vê outra pessoa fumando, desespera-se. “Uma vez, estávamos na nossa casa, em um píer à beira-mar, e Aldi começou a pedir cigarros. Eu estava ocupada e não dei muita atenção. Ele começou a chorar muito e ameaçou se jogar na água se não ganhasse um cigarro. Não levei a sério e continuei a fazer minhas coisas. A cena seguinte foi de um barulho de uma pessoa caindo no mar. Ele tinha pulado”, lembra a mãe.

Perdeu, vilão

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Conhecido como o homem mau de inúmeras novelas, Herson Capri enfrentou na vida real um adversário muito mais difícil de superar do que os galãs globais: o câncer no pulmão. E, dessa vez, ele venceu. Protagonista de uma famosa propaganda de cigarro nos anos 70, hoje o ator afirma: “Transformar o cigarro em questão de liberdade individual é uma excrescência”

Herson Capri

Herson Capri

No apartamento de Herson Capri há apenas um cinzeiro. Ele é de argila, tem uma casa e um sol pintados e só está lá, em sua mesa de centro, pois foi feito pelas mãozinhas de Luiza, sua filha caçula, em uma aula de artes. Desde 1993, esse tipo de objeto não tem muito uso para o ator global. Foi naquele ano que ele finalmente tornou-se um ex-fumante convicto, depois de quase três décadas em que chegou a consumir três maços por dia. Para Capri, hoje com 60 anos, cigarro nem se for de mentira. Se algum papel envolve fumar em cena, por exemplo, ele não topa. E não quis nem ver o cigarro eletrônico que Trip levou para a sessão de fotos debaixo d’água.

Tamanha ojeriza não é para menos. Quando já estava havia seis anos livre da nicotina, seu corpo resolveu cobrar a conta de toda a fumaça que engoliu por tanto tempo. Realizando exames pré-operatórios para uma lipoaspiração que faria para encarnar Jesus na peça Paixão de Cristo, Capri descobriu um tumor no pulmão, a meio centímetro da pleura. Era câncer. O ator deu sorte: segundo o Departamento de Medicina da Unifesp, em quase metade dos casos a sobrevida após cinco anos do diagnóstico fica entre 10 e 15%.

“Com cigarro ficava tudo opaco. Sem ele você mais que vê, você admira”

Com fôlego novo, o Herson Capri nadador, campeão paranaense, voltou à raia. E, vira e mexe, viaja para praticar mergulho na companhia de Suzana, sua esposa, e dos quatro filhos. Um programa de férias inimaginável para o Cortez de Insensato coração, vilão da penúltima novela da Rede Globo que arrebatou o Brasil. Tanto que emendou um papel no outro: atualmente, ele é Alberto, protagonista de Aquele beijo. E ainda está em cartaz com a peça Conversando com mamãe. No meio disso tudo, arranjou tempo para bater um papo com Trip e cair de roupa e tudo na piscina do prédio onde mora, na zona sul do Rio de Janeiro. A meninada ficou em volta, sem entender nada. “Eles estão fazendo uma matéria sobre homens de fôlego”, explicou o pai da Luiza.Quando ainda exibia Freire ao final do nome artístico, lá pelos idos dos anos 70, Capri estrelou a campanha do cigarro Continental. No filme ele é um jovem que regressa da metrópole para sua cidade natal, em um emocionante reencontro com a família e os amigos. O ator aparece fumando no trem, no táxi e à mesa de café da manhã, onde oferece um cigarro para o pai. Completando o clima, a trilha é “O portão”, de Roberto Carlos (aquela do “Eu voltei/ Agora pra ficar”). O garoto-propaganda de marca de cigarro que teve câncer de pulmão... seria irônico se não fosse recorrente, vide dois cowboys da Marlboro e um dos Winston Man, todos vítimas da mesma doença do brasileiro.

Quando você começou a fumar?
Com 11 anos. Com 12, 13, parei. [Luiza, ao lado, arregala os olhos: “Aos 11, pai?”.]

Mas você já sabia tragar com essa idade?
Na rua aprende-se de tudo. Cresci em Ponta Grossa (PR), onde tinha uma turma de amigos fantástica, jogava futebol, fazia fogueira, assava pinhão, batata-doce quase toda noite. E ali, claro, rolou cigarro. Mas meu pai descobriu, me botou de castigo. Ele fumou uma época, assim como minha mãe, mas tinha todo um discurso contra.

Você gostou na hora?
Não. O que me atraía era o ato de fumar. A fumaça é uma coisa esquisita, não é legal. Mas o gesto era transgressor, significava não ser normal, ser mais velho, imitar os galãs de cinema.

Mas você disse que parou aos 12...
É, quando meu pai descobriu. E aí veio a natação, que me afastou do cigarro. Mas quando entrei no teatro desandei de vez. Embalei mesmo com 15 anos, mas parei várias vezes na vida. Cheguei a ficar dois anos sem, mas voltei. É um vício, né? Você tem o prazer da garganta, que é interessante. Tem o gestual, a fuga. Quando você está estudando, trabalhando, é um ponto de apoio, uma âncora.

O que fazia você tentar parar?
Fumar não é inteligente, assim como todos os vícios ligados a alguma droga. Você prejudica sua saúde, sua vida social. Produz menos, se concentra menos, enxerga menos, cheira menos, sente menos. Tudo menos. É sem sentido. É realmente feito para o lucro de uma indústria, disso não há dúvida. Na verdade, como tudo no sistema em que vivemos. O cigarro é um exemplo máximo disso, porque passa por cima da saúde em função do lucro. A bebida é outro exemplo. Deveria haver um sistema ético que determine o que pode ser fabricado ou não.

Você se considera uma vítima da propaganda?
Não era apenas uma propaganda, era toda uma cultura. Os intelectuais fumavam, os artistas fumavam, as pessoas populares fumavam. E você se sentia segregado se não fizesse igual.

 

Quando jovem, você foi campeão de natação do Paraná. Mesmo nadando, você fumava?
Fumava antes das provas porque ficava nervoso! Depois fui campeão justamente quando parei por um período. Óbvio! O cigarro intoxica. Você fica sem vontade, tudo fica mais arrastado. O que foi mais forte para mim quando eu parei foi a clareza do olhar. Eu conseguia enxergar o céu azul bonito. Com cigarro ficava tudo opaco. Sem ele você mais que vê, você admira.

Você fez o comercial do cigarro Continental, hoje antológico. Como surgiu o convite?
Me viram numa peça, em duas propagandas e me chamaram. Quando li o roteiro fiquei encantado, porque era um filme completo, com início, meio e fim. E eu nunca tinha feito um filme! Achei que era minha chance. Eu fumava, não tinha nenhuma preocupação em fazer propaganda de cigarro, em ser politicamente correto.

E alguém tinha essa preocupação na época?
Ninguém. Pelo contrário, me paravam na rua para elogiar, de tão bonita que ela era. Você pode utilizar a arte para qualquer coisa. E nós artistas botamos o nosso trabalho à mercê de quem paga.

Já passou pela sua cabeça que você talvez tenha influenciado pessoas a começar a fumar?
Tenho certeza de que sim.

Isso incomoda você?
Não, sou tão vítima quanto algoz.

Mas você se arrepende de ter feito?
Não posso me arrepender. Sei que fiz um trabalho que mandava as pessoas fumarem, e isso não é legal. Mas naqueles tempos se eu falasse isso para alguém iam achar que eu era maluco. Não tinha sentido eu recusar.

Como você largou o cigarro?
Foi uma linha de chegada de todas as minhas outras tentativas anteriores. É muito perigoso falar “um dia eu paro”. Tem que parar logo. Parei em 1993, decidido de que fosse para sempre.

Você foi ao médico, tomou remédios?
Nada. Só força de vontade. Voltei a nadar, competi de novo na categoria master, ganhei medalha de segundo lugar.

Mesmo assim, seis anos depois apareceu o câncer.
Apareceu exatamente no ano em que parei, mas só fui descobrir depois. Talvez por intuição. Acredito mais em intuição do que em premonição ou destino.

Como você descobriu a doença?
Fui fazer uma lipoaspiração para interpretar Jesus na Paixão de Cristo e nos exames pré-operatórios descobriram. Nem era vaidade, não. Era para fazer o papel. Cristo só comia mel e nozes, era magérrimo. Sou italiano, tenho essa picanha lateral no abdome [risos], a ossada larga.

Como foi esse dia?
Foi a Suzana que pegou a chapa. Cheguei em casa e ela estava chorando. Ela é médica, viu na hora o que era. Perguntei o que estava acontecendo e ela: “Nada, nada”. Até que arranquei o envelope da mão dela.

Você entendeu logo do que se tratava?
Só podia ser câncer. Tava feio pra caramba. O médico falou: “É uma bomba-relógio, está muito perto do coração e do pulmão”. Passei raspando.

Como você encarou o tratamento?
Com uma praticidade quase desagradável.

Não tinha medo de morrer?
Não, porque eu tinha certeza de que ia morrer! Passei tudo para o nome da Suzana, que na época era só o carro e a conta do banco.

 

Mas o médico falava que você ia morrer?
Não. Dizia que a chance era de 50% nos primeiros dois anos após a cirurgia e que depois ia diminuindo. Mas eu só soube disso quando as chances eram quase zero. A Suzana escondeu de mim.

E você interpretou Jesus mesmo assim.
Sim, o médico liberou. Disse que dependia de mim. Então claro que eu fiz.

Você nota uma mudança de comportamento na classe artística em relação ao cigarro?
Tenho certeza de que se fuma menos atualmente, em todas as classes. É complicado fumar hoje em dia. Tenho um cunhado que vem aqui em casa, pega o elevador e vai até a rua fumar. Eu digo brincando: “Prefiro sua fumaça a sua ausência”. O cara se sente culpado, mesmo que não queira.

O que você acha das restrições ao fumo?
Acho correto. Assim como você não pode roubar, matar, você também não pode prejudicar os outros com a sua fumaça.

Mas você acha que faltam outras iniciativas?
O cigarro deveria ser mais caro, por exemplo? Não sei. Acho que a queda da indústria tabagista vai ser natural.

o cigarro deveria ser proibido?
Não. A sociedade cria mecanismos de autoproteção. E eu acredito na liberdade de escolha, desde que se saibam as consequências.

Você fez parte do quadro no Fantástico do Drauzio Varella sobre cigarro e agora está dando uma entrevista sobre o mesmo tema. Você quer ser um herói contra o fumo?
Não. Só estou dando esta entrevista porque vocês pediram [risos]. Mas, falando sério agora, acho que posso colaborar expondo minha experiência. Só não vou pegar uma bandeira, porque respeito muito a liberdade individual. Detesto ex-fumante chato. Se perguntarem o que acho, eu respondo, mas só isso. A única questão que eu defenderia é a da prevenção, de fazer checkup. Não temos no Brasil o costume de pedir exames antes de os sintomas aparecerem. Mas a possibilidade de cura é sempre muito maior se pegarmos o câncer começando. Eu, por exemplo, não tinha sintoma nenhum.

Hoje a indústria tabagista defende-se batendo na tecla da liberdade individual. O que você acha disso
Uma excrescência. Se o produto dela mata pessoas, deve haver um contrapoder, que é exatamente o que está acontecendo.

Tem fogo?

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Pode não parecer, mas este simpático senhor é um dos maiores inimigos da indústria do cigarro no Brasil. Responsável pelo primeiro processo contra as empresas do fumo no país, o advogado Mário Albanese foi compositor de sucesso nos anos 50, inventor de um novo ritmo musical e pioneiro no futebol de salão

Uma placa de dois palmos de largura está pendurada ao lado da campainha na entrada do apartamento nos Jardins, em São Paulo. Em chamativas letras vermelhas, a inscrição diz: “Please, no smoking”. O pedido deixa claro que estamos no endereço certo: a porta de entrada para a casa de um dos maiores inimigos da indústria do fumo no Brasil. O senhor grisalho e elegante que nos recebe chama-se Mário Albanese. Ele é o advogado responsável por entrar com o primeiro processo na história do país contra as gigantes empresas fabricantes de cigarro e também é o criador da Adesf (Associação de Defesa da Saúde do Fumante). “As pessoas acham que nós defendemos o fumante. Na verdade, defendemos a saúde dele. Esclarecemos que o cigarro é fabricado para viciar, adoecer, mutilar e matar. Não tem outra expectativa”, diz Mário.

Em 1995, a Adesf entrou na Justiça com uma ação coletiva indenizatória contra a Souza Cruz e a Philip Morris. O argumento para o processo? A indústria do tabaco estaria prejudicando consumidores com publicidade enganosa e abusiva de seus produtos e infringindo o Código de Defesa do Consumidor. A iniciativa, então inédita no país, já era o suficiente para preocupar as empresas. Mas a associação conseguiu mais. Normalmente, quem processa deve provar o que diz. Nesse caso, não. “Conseguimos inverter essa obrigação”, conta Mário. “Eles é que teriam que mostrar que a nicotina não vicia e que não existe propaganda mentirosa. A ação foi um marco na luta antifumo.”

Foram vitórias seguidas na Justiça contra a indústria do tabaco. As empresas apresentavam recursos, mas todos eram derrubados pela associação. Mesmo assim, Mário sabia que estava lidando com uma indústria poderosa. “É muito difícil lutar contra essa gente, eles fazem da mentira uma coisa santa. Juízes chegaram a ser afastados porque deram parecer contra a indústria.” Quando tudo parecia caminhar bem, chegou a hora do choque de realidade: uma juíza deu parecer favorável à engrenagem tabagista. “Eu não dormiria tranquilo se fosse essa juíza. Alegar, como ela alegou, que não existe propaganda enganosa e abusiva na publicidade do fumo é um absurdo! É dar tapa na cara da gente. Por coincidência, na mesma época do parecer havia uma exposição no Incor mostrando exatamente como a indústria engana com a propaganda. Mas essa história ainda não acabou.”

Arquivo Pessoal

Mario Albanese no auge da forma

Mario Albanese no auge da forma

Assim como a ação coletiva, todos os outros processos movidos pela Adesf tiveram o mesmo desfecho: a vitória final das empresas de tabaco. Perguntado sobre qual o argumento utilizado pela indústria para ganhar sempre, ele se exalta: “É exatamente essa a questão, meu querido! Eles nunca apresentaram uma prova sequer de que têm razão. Nada! Isso é chamar todo mundo de trouxa! Eles dão o argumento surrado do direito de escolha da pessoa. Como você pode falar em liberdade de escolha para uma criança que ainda não tem opinião de nada? Porque ela é o alvo dessa publicidade!”. Mas e as advertências nos maços? “O que adianta advertência para uma pessoa que já está escravizada? Ela foi cooptada quando criança, depois já não tem mais volta.”

Alvo de espionagem

Na parede do escritório de Mário Albanese está pendurada uma página inteira do jornal Folha de S.Paulo do dia 3 de março de 2008. O título diz: “Souza Cruz espionou ativistas antifumo, sugere documento”. Os tais ativistas, no caso, eram Mário e seu sócio na criação da Adesf, Luiz Mônaco. Os dois sabiam que estavam comprando uma briga difícil, mas não imaginavam o tamanho do problema. “Lembro que na época o repórter me telefonou e disse: ‘Mário, você precisa se cuidar. Vou para os Estados Unidos e quando eu voltar nós conversamos’. Ele viajou justamente para apurar essa história. Quando voltou veio aqui em casa e me contou tudo. Fiquei perplexo.”

As notícias de espionagem e as derrotas na Justiça fizeram Mário desanimar, mas não desistir. Parte da motivação que o fez seguir na empreitada contra a indústria tabagista está ligada a sua família. Seu pai morreu com pouco mais de 40 anos, vítima do cigarro. “Foi uma tristeza muito grande não ter conseguido fazê-lo parar de fumar”, diz. O único dos cinco filhos que fumava se envolveu também com drogas mais pesadas. “Isso me fez muito mal, não sabia como lidar com o problema. Minha história de vida não tinha nada a ver com drogas, sempre fui muito do esporte.” As fotos espalhadas pela casa não o deixam mentir. Um retrato em preto e branco mostra um atlético jovem fazendo uma parada de mão. A seu lado, um troféu de futebol de salão. “Quando você gosta de esporte acaba se atirando em tudo. Mas me defini pelo futebol de salão, uma modalidade que nós praticamente iniciamos. No começo da década de 50, não tinha federação, não tinha nada. Jogávamos em quadra de basquete com uma bola recheada de crina de cavalo.” Os atuais 80 anos de idade já não permitem muito esforço, apenas “algumas subidas de escada” para fugir do sedentarismo. Mas as mãos ele ainda exercita e muito.

Maestro Mário

Na sala de seu apartamento estão dois pianos. Um serve apenas de estante para vários porta-retratos. O outro, Albanese usa para tocar pelo menos dez vezes durante a visita da Trip. Para muitos ele não é o doutor Mário, advogado, mas sim o maestro Mário, músico e compositor. O responsável por criar um novo ritmo musical nos anos 60, o jequibau. “É um ritmo sui generis, com um compasso de cinco tempos, diferente do tradicional, que são quatro.” Está até no calendário: 13 de agosto, em São Paulo, é dia do jequibau. Por conta da criação, foi aos EUA convidado por um produtor americano para gravar dez músicas do novo estilo. A capa do LP lançado em 1965 dizia: “O excitante novo ritmo do Brasil”. Foi notícia na Billboard, muitos artistas regravaram suas composições de jequibau no exterior. No Brasil, nem tanto. “Um cara que poderia ter feito algo era o [Wilson] Simonal, um amigão meu. Apresentei-lhe umas músicas, mas ele não levou adiante. Outra foi a Elis Regina. Fui a sua casa mostrar um trabalho, mas ela não quis gravar porque disse que a música falava de Deus.” Restou a Mário se valer das mais de 250 composições que havia feito antes de criar o jequibau. Essas fizeram mais sucesso por aqui. No final da década de 50 chegou a ser gravado por Agnaldo Rayol, depois por Jair Rodrigues. A vida na música só não foi ainda mais intensa porque a mãe de Mário não deixou. Queria ver o filho em outra carreira. Insistiu até que ele se inscreveu na faculdade de direito da USP e em educação física. Foi aceito nas duas, mas optou pelo direito. Mário não se arrepende da escolha, mas talvez a indústria do cigarro estivesse mais feliz se o doutor Mário Albanese fosse um professor de esportes ou somente o maestro Mário.

Pronto... lancei! :)

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Depois de meses com esse disco aqui pronto esperando, hoje acordei num impulso incontrolável e liberei o Kingston Bossa pras pessoas.

Música tem que nascer, coloquei tanta energia nesse disco que não dá mais pra ficar aqui esperando questões de lançamento e isso e aquilo. Deu vontade faz!

Então é com muito orgulho e carinho que eu entrego pra vocês uma das coisas que fiz com mais empenho e amor nos últimos anos. KINGSTON BOSSA nasceu!!!

É só entrar no site e baixar.

www.carlinhoszodi.com

Aproveitem que é nosso!!! Esse vídeo conta um pouquinho do começo da história. A parte jamaicana conto em capítulos logo mais.


Estela Renner

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Depois de denunciar a publicidade infantil, a cineasta Estela Renner compra a causa de 33% das crianças brasileiras: a obesidade

Sabe aquele momento de epifania quase mística, que transforma, aponta caminhos e ajusta as pessoas em seu caminho definitivo de vida? “Acho que comigo não houve essa epifania”, diz Estela Renner, a diretora paulista de 39 anos que está lançando seu segundo longa-metragem, Muito além do peso, um documentário sobre a epidemia de obesidade que atinge 33,5% das crianças brasileiras. “Porque nunca houve dúvidas. Quando eu comecei a fazer cinema, me encontrei totalmente.”

Estela está se referindo ao ano de continued education, na Universidade de Nova York, ao mestrado em artes plásticas e à formação em motion pictures na Universidade de Miami. Mas é só vencer sua timidez quase crônica para notar que Muito além do peso ou mesmo o documentário anterior, Criança, a alma do negócio (2008), começaram na sua própria infância no bairro de Pinheiros, zona oeste de São Paulo. As brincadeiras de rua, a turma de meninas do colégio Santa Cruz (do qual faziam parte Renata Ursaia, fotógrafa de seus filmes, e a pedagoga Ana Lucia Villela, diretora do Instituto Alana, que os apoia). Os tempos de bandeirante, a adolescência mochilando pelo Norte e Nordeste, o ano de curso de nutrição na USP, o de publicidade na ESPM de manhã e a escola de atores Indac à noite. “Quando eu e Renata estávamos no Amazonas, comendo e dormindo com os moradores, parecia que estávamos em mais uma das nossas viagens de mochila, com a diferença de que agora estávamos trabalhando. Mas, de certa forma, nós já havíamos começado a trabalhar naquela época. E, de certa forma, nem parece que estamos trabalhando agora, tamanho prazer de fazer o que a gente faz.”

Foi na escola de atores que Estela descobriu que, mais do que atuar, queria mesmo era dirigir. E se mandou para os Estados Unidos para estudar, com direito a um ano no Japão trabalhando como modelo (“juntando o dinheiro que eu usei no mestrado”, diz ela, filha de um casal de dentistas). E mais peças foram se somando, naturalmente, à sua trajetória. Seu premiado curta-metragem Big Sister, sobre a dificuldade de comunicação entre uma empresária de sucesso e sua filha adotada, já falava das relações familiares deterioradas. “Nada é por acaso”, diz.

 

Em 35g de refresco de fruta em pó, há 28g de açúcar e apenas 1% de suco de fruta

 

Depois de alguns curtas, comerciais, participação na sitcom Mano a mano, experiências como atriz, Estela foi convidada por sua amiga de infância Ana Lucia Villela para dirigir as videoaulas do Instituto Alana, uma ONG de defesa das crianças. O contato com educadores e crianças acabou se transformando em Criança, a alma do negócio, um apavorante registro sobre como a publicidade gera consumidores precoces e, por consequência, adultos imaturos. “Meu filho de 3 anos pediu para ir ao posto Esso, por causa dos brindes para crianças”, relembra Estela, sobre a origem do filme. “Foi quando notei que havia um promotor de vendas dentro da minha casa, na televisão. E disse ao Marcos que a gente tinha de fazer alguma coisa.”

“Marcos” é Marcos Nisti, vice-presidente do Instituto Alana, que virou sócio de Estela na criação da produtora Maria Farinha Filmes. Criança, a alma do negócio não chegou a entrar em circuito comercial, mas foi muito bem recebido pela imprensa e por educadores e pedagogos. Suas várias versões disponíveis no YouTube somam centenas de milhares de views, sem contar os compartilhamentos da versão completa e trailers. “Abriu muitas portas pra gente”, diz Marcos Nisti. “Quando começamos a buscar especialistas para um novo documentário, era incrível notar que todo mundo havia assistido ao Alma do negócio”.

Papaia?

O novo projeto surgiu quase como um spin-off do primeiro. Há pelo menos uma cena em comum: Estela mostra algumas frutas comuns para crianças e flagra a pouca intimidade delas com aquele tipo de alimento. “Ficamos muito espantados que as crianças no Brasil não soubessem o que é uma manga ou um mamão papaia”, diz Estela. “Aquilo nos incomodou muito.” Outra semelhança é a artilharia pesada contra a publicidade dirigida à criança: “O grande assunto do novo filme não é a publicidade”, esclarece Nisti. “Acredito que nosso grande assunto agora seja a criança, e em como ela é tratada nesse mundo contemporâneo, como vivemos nossas relações familiares. No primeiro filme, o grande assunto era a publicidade e os problemas que ela nos traz, entre os quais a obesidade. Neste, é a obesidade, e a gente elenca algumas de suas causas, e uma delas é a publicidade.”

 

“Não é possível que em um país onde um terço das crianças está com sobrepeso, nós não estejamos falando o tempo todo sobre isso”

 

De fato, vem chumbo de todo lado: para as marotas tabelas nutricionais das cadeias de fast-food, para famílias que não fazem refeições em casa, pais que cedem à birra dos pequenos e escolas em que correr no recreio tornou-se proibido. “A obesidade é multifatorial”, diz Estela. “Mas acho que Muito além do peso ilumina algumas questões que as outras mídias não iluminam, ou porque não querem ou porque não podem. O Fantástico, por exemplo, tem séries ótimas sobre como tratar a obesidade, mas ninguém fala nada, nunca, sobre suas causas. E não é possível que, num país em que um terço das crianças está com sobrepeso, a gente não esteja falando só disso! Imagine se um terço do Brasil estivesse com dengue.”

 

Um pacote de biscoitos recheados de 165g tem 30g de gordura e 50g de açucares, o equivalente a oito pães franceses

 

Estela está ficando exaltada. Melhor para a nossa reportagem. Lembro de um debate, ainda sobre Criança, a alma do negócio, em que a diretora contou sobre o quão “furiosa” ela fica quando um sorveteiro na praia vem oferecer o doce a seus filhos. Segundo Estela, se o dever de educar a criança é dos pais, o oferecimento necessariamente deve ser feito aos pais. Quando falamos sobre as estratégias de marketing das grandes empresas de alimento, ela usa a palavra “sacanagem”: “Por que eles chamam de néctar uma bebida que só tem 20% de fruta e 80% de açúcar, corante e água? E por que eles usam embalagens com frutas lindas e grandes? Será que não é para convencer a mãe de que ela está fazendo um bem a seu filho trocando o refrigerante pelo ‘néctar’? E por que nas tabelas nutricionais, ao lado da palavra ‘carboidrato’, tem um aviso da Anvisa recomendando a ingestão de 2.500 calorias? É claro que é uma associação preparada para que o consumidor ache que está tudo bem. Isso é cruel, e é perfeitamente evitável”.

Apesar de contar com depoimentos de especialistas de todo o mundo (da chef Ann Cooper ao superpublicitário Alex Bogusky), todos os personagens são brasileiros. Os olhos de Estela marejam ao falar de alguns personagens do filme, como Yan, um garotinho de 4 anos de Careiro da Várzea, Amazonas, que enfrenta problemas no coração e no pulmão. Ou Carol, uma adorável menina de 8 anos, filha de uma ex-gerente de projetos de TI do McDonald’s. Em determinado momento do filme, a mãe diz de Carol diz: “Eu deixei de trabalhar para eles porque eu me sentia colaborando para o tráfico tendo em casa uma consumidora”. Se você não chorar com o esforço e a singeleza de Carol e Yan, é porque a gordura hidrogenada já entupiu até seus dutos lacrimais.

 

“A coisa só vai mudar quando a saúde do cliente estiver tão na moda quanto hoje está a sustentabilidade”

 

Muito além do peso ficou entre os 24 finalistas da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (“a história vai ficar mais emocionante ainda”, prevê Nisti). A estreia aconteceu dia 12 de novembro, numa sessão seguida de debate com alguns dos depoentes do filme (Ann Cooper, Frei Betto, doutor Amélio Godoy Matos e Estela Renner) no Auditório Ibirapuera, em São Paulo.

Pelo calor das discussões que provocou até agora, tem sido plenamente atingido seu objetivo: discutir a ética do mercado. “A coisa só vai mudar por contingência de mercado”, diz Estela. “Quando a saúde do cliente estiver na moda, como hoje está o ‘selo verde’ da moda da sustentabilidade. Mas diretores de marketing também têm filhos. Dá pra mudar, a situação vai ser repensada.”

Vai lá: O filme está em cartaz nos cinemas da rede Espaço Itaú www.muitoalemdopeso.com.br

Vanusa de Melo

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Marizilda Cruppe

Vanusa de Melo: Professora, 39 anos - Professora de português no sistema prisional fluminense e autora de um guia para ex-detentos

Vanusa de Melo: Professora, 39 anos - Ensina português no sistema prisional fluminense e é autora de um guia para ex-detentos

Uma simples carta, encontrada dentro de um livro abandonado, levou Vanusa de Melo a mudar a vida de milhares de presos do Rio de Janeiro. Agora, depois de ensinar a ler e a amar os livros, a professora quer ajudar a reintegrar ex-detentos à sociedade

Ela nasceu no sertão da Paraíba, num vilarejo chamado Sossego, em 1973. Aos 5 anos, expulsa pela fome, sua família – pai, mãe e quatro irmãos – migrou para São João do Meriti, na Baixada Fluminense. Aos 9, começou a trabalhar como costureira numa fábrica, profissão que só deixou aos 20. Passou, então, no vestibular e cursou letras na Uerj. No primeiro ano da faculdade, já começou a dar aulas – ao mesmo tempo em que abraçava a militância e os movimentos de combate à desigualdade social. Em 1997, aos 25 anos, enfim, recebeu uma mensagem do destino, que veio em forma de carta, encontrada dentro de um livro de Dalton Trevisan que achou perdido sobre um banco no centro do Rio de Janeiro. Era uma mensagem de um detento para sua esposa e se assemelhava a tantas outras desse tipo. Contava a vida na prisão, a solidão do dia a dia, a dura convivência na cela lotada... e marcou forte a moça que encontrou a correspondência.

Vanusa de Melo, miúda e rechonchuda, óculos de grau bem marcantes, chegou esbaforida ao Parque Lage, no Jardim Botânico, carregando essa história – ou saga – e um monte de pastas com provas dos alunos. Nós nos acomodamos numa mesinha do café, de frente para a piscina. Era um dia de céu de nuvens inchadas, abafado como uma estufa. O jardim exuberante do Parque Lage suava. No café do palacete de estilo eclético que abriga a Escola de Artes Visuais (EAV), uma turma de jovens saudáveis e bronzeados, com textura de final de tarde na praia de Ipanema, circulava para lá e para cá com as suas telas e pincéis. Vanusa nunca tinha entrado ali. “Parece outro Rio de Janeiro!”, comentou.

Desde 2009, Vanusa trabalha como professora de português no sistema prisional. Primeiro, Degase, o Departamento Geral de Ações Socioeducativas, destinado à correção de crianças e adolescentes. Há três anos, está no presídio Evaristo de Moraes, conhecido como Galpão da Quinta, onde ficam os chamados presos do “seguro”. Ou seja, aqueles que nem os outros presos querem por perto, os jurados de morte. “São presos que precisam de proteção, ou porque romperam com a facção ou porque estão enquadrados no artigo de estupro e atentado violento ao pudor”, ela explicou, sorvendo água com gelo e limão. “Na verdade, quando fui para lá, não me foi dito que era esse o perfil dos alunos. Se tivessem me dito, talvez eu nem tivesse ido.”

 

“Educação dentro dos presídios não é benefício. É direito constitucional. Se os detentos tiverem seu direito desrespeitado, eles vão tomá-lo. É o ovo da serpente”

 

Vanusa não só foi como abraçou a causa. Ao assumir o cargo no Galpão da Quinta, uma penitenciária com cerca de 2 mil internos, onde 400 estudam, assumiu um lema: “Eu entendi que o trabalho de educação não podia ser restrito à sala de aula. Não pode em nenhuma escola, mas ali especialmente”. Ela começou a realizar projetos fora do currículo, que lhe custavam – ou lhe custam – o tempo de folga. O pouco tempo de folga. Vanusa também faz mestrado em educação na PUC-RJ e dá aulas num colégio particular da zona sul. “A gente vai dando um jeito”, ela garantiu, com seu jeito despachado de nordestina, ostentando roupas brancas e exibindo no pescoço contas de seguidores do candomblé. “Sou filha de Xangô, o orixá da justiça”.

O primeiro projeto foi uma oficina de literatura, em 2010. Em 2011, começou também um cineclube. “Exibimos coisas boas, ligadas ao universo deles, como Olga e Contador de histórias”. Este ano, começou o projeto Cartas para Romeu, em que seus alunos do colégio da zona sul escrevem pedindo conselhos aos alunos do presídio: “A ideia nasceu na exibição de Cartas para Julieta. Quando acabou, os internos estavam emocionadíssimos. Eu precisava aproveitar aquela emoção na escrita. A troca é muito interessante, e ano que vem vamos inverter. Os presos vão se aconselhar com os adolescentes do colégio”.

Marizilda Cruppe

Vanusa com os ex-presidiários Luiz Henrique e Samuel, que estão ajudando a professora na produção do guia

Vanusa com os ex-presidiários Luiz Henrique e Samuel, que estão ajudando a professora na produção do guia

Voltando à vida
A última ideia que está tirando o sono da Vanusa é o lançamento de um “guia do egresso” no Rio de Janeiro, adaptação do guia que já existe em São Paulo, o Dicas, criado pelo escritor, colunista da Trip e ex-presidiário Luiz Alberto Mendes e encampado pelo governo do estado. “As pessoas que ficam muito tempo presas não sabem mais nem transitar na cidade, que ônibus pegar, como tirar documentação”, comentou, agora se refrescando com um mate. “São caminhos para se situar. Não é paternalista. É a pessoa querendo fazer algo e encontrando informação para isso: como chegar, no sentido físico e também no figurado.”

Para o guia, Vanusa reuniu uma série de parcerias: da OAB à Uerj, passando por diversas entidades ligadas ao sistema penitenciário. O projeto vai abranger uma população de cerca de 50 mil presos do estado do Rio, onde menos de um quarto estuda.

“Existem setores da sociedade e do governo que não compreendem que não estamos defendendo os direitos humanos num sentido moralista”, diz o presidente da Comissão de Direito à Educação da OAB, Mário Miranda Neto. “Não podemos mais tratar a educação nas penitenciárias como benefício. Não é benefício. É direito constitucional. Isso significa respeitar a democracia. O guia não é para ensinar. É para promover igualdade, e por isso decidimos apoiar.”

Vanusa envolveu também no projeto ex-presidiários que passaram pelo Galpão da Quinta. Luiz Henrique Machado da Silva, 31 anos, e Samuel Nascimento da Silva, 29, são dois dos animados colaboradores. O primeiro ficou preso de 1999 a 2009. E o segundo, de 2004 a 2012. Ambos concluíram o ensino médio na cadeia. “Estudar ali é muito difícil, tudo vai contra. Muitas vezes o carcereiro não abre a cela na hora da aula. Diz: ‘Vagabundo não tem que estudar’”, contou Samuel, o mais falante da dupla. “O guia é importante para nós e para todo mundo. Cada ex-presidiário que não reincide significa uma pessoa a menos sofrendo uma agressão. A maioria não quer reincidir”, emenda Luiz Henrique. “Mas precisa de muita ajuda.”

Vinícius Zanotti

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Em meio a uma grande viagem mochilando por Europa e África, Vinícius Zanotti descobriu sua vocação em um dos países mais pobres do mundo. Ao conhecer o projeto das escolas de bambu da Libéria, engajou-se de vez no tema e agora tenta convencer os empresários daqui a investir em boas ideias para lá

Não é sempre que pegar malária vem a calhar... Aos 25 anos, Vinícius Zanotti estava de malas prontas para encerrar sua visita ao continente africano e seguir mochilando pela Europa, quando recebeu o diagnóstico. Resolveu ficar, já que a Libéria está trocentas vezes mais acostumada a cuidar da enfermidade do que doutores europeus. Internado em um dos países mais pobres do mundo, começou não apenas a entender, mas a sentir, o que é miséria de verdade. “O Brasil tem muita pobreza, mas não tem comparação. A situação do interior do Nordeste, perto da Libéria, é quase luxo”, ele conta enquanto enumera dados sobre o país com o sexto pior IDH do mundo e que há menos de dez anos saiu de uma guerra civil que matou 300 mil e deixou sequelas terríveis em pessoas e cidades. A Libéria, fundada em parte por escravos recém-libertos dos Estados Unidos, já foi uma das nações mais pacíficas do continente e uma das maiores esperanças de uma nação africana livre da opressão. Hoje vive sem infraestrutura elétrica, sem uma economia viável, sem rede de esgoto, com baixa expectativa de vida e sem qualquer esperança para jovens e crianças. Ou quase... porque, enquanto se tratava da malária, Vinícius conheceu Sabato Neufville, um tipo de herói local. Como “profissional”, ele presta serviços para a missão de paz da ONU no país. Na prática, usa seus 800 dólares mensais para cuidar de nove filhos adotivos e organizar o United Youth Movement Against Violence. E ainda arrumou tempo para erguer a única escola da comunidade de Fendell, periferia da capital, Monróvia.

“Quando vi aquela escola no meio do nada, sem banheiro, construída como dava, me emocionei muito”, confessa Vinícius, que, antes de embarcar para a África, já militava em movimentos sociais no Brasil. Como jornalista e ativista, e agora ainda mais doente, vítima de uma febre tifoide, continuou no país para filmar um documentário sobre a escola de bambu que Sabato ergueu. Enquanto filmava, fez um pacto com seu novo amigo e com as crianças da Libéria. Iria voltar para casa e dar um jeito de construir uma nova escola. Maior, mais preparada, sustentável e que fosse capaz de criar um intercâmbio de conhecimento e de tecnologia brasileira.

De volta há dois anos, ele quase não fez outra coisa. Trouxe Sabato para o Brasil e viu seu amigo entrar em choque ao ver prédios, ruas e eletricidade farta. “Para um morador da Libéria, nossas favelas são quase um sonho”, explica. Arrebanhou amigos e aliados. Lançou o documentário e começou a levantar o financiamento para a construção da escola de bambu na Libéria. Hoje mais de 30 pessoas colaboram voluntariamente com a ideia, entre elas o arquiteto autor do projeto, André Dal’Bó, que desenvolveu uma escola feita toda de bambu e tijolos de adobe, materiais locais e de fácil manipulação. Mas pensada para ser mais do que um mero teto para aulas.

 

“O Brasil tem muita pobreza, mas nada que se compare. Nossas favelas, para os moradores da Libéria, são praticamente um luxo”

 

Os sistemas de esgoto, de iluminação, de hidráulica e de geração de energia elétrica são autônomos e de baixíssimo custo. As soluções criadas para sustentar a escola, como um gerador baseado em rodas de bicicletas e HDs de computadores reciclados, transcendem muito a questão das aulas. Em um país quase sem chances de emprego como a Libéria, soluções estruturais como essas também são formas de criar trabalho e novas especialidades no país. “A Libéria é um grande depósito de lixo eletrônico. Imagina se a gente consegue criar pessoas capazes de utilizar parte desse material para fabricar geradores de eletricidade”, Vinícius explica.

“É um prédio bem mais barato. O que projetamos custa 400 mil reais, ao passo que uma escola de alvenaria no Brasil sai 2 milhões de reais”, segue o rapaz. E emenda: “A Libéria já tem florestas de bambu, o material está na mão e é mais sustentável do que o ferro. O bambu, quando você corta, em três anos cresce. Já o ferro é extraído da natureza e acaba”.

E você com isso?
O plano, a equipe, a autorização do governo da Libéria já estão na mão. O que falta, como sempre, é conseguir a verba para fechar a conta da escola. Incluindo tudo, viagem e casa para o time brasileiro no pacote, são 410 mil reais. Mas a conta pode cair muito se parte do projeto for feita na própria Libéria. Vinícius acredita que com pouco mais de metade desse valor seja possível colocar o essencial de pé: “Levantar recursos tem sido o mais difícil. Todo mundo gosta do projeto, mas, na hora de patrocinar, qual empresa vê a Libéria como algo relevante para seu marketing?”.

O projeto é explicado em www.escoladebambu.com e ali, além de descobrir como dá para ajudar, as contas são abertas e dá para entender para onde irá cada centavo. Falta muito? “Este ano temos promessas de doações maiores e vamos acelerar a divulgação. Mais 50 mil e temos condições de embarcar no começo de 2013 para lá.” Por enquanto o dinheiro vem de doações, festas beneficentes e vendas de produtos, como uma camiseta desenhada pelo estilista Ronaldo Fraga, que, quando topou ajudar o projeto. “Não tinha como não me envolver. O mundo encolheu. Não é um problema brasileiro ou internacional. É um problema do nosso tempo”, analisa Fraga, ajudando a desfazer uma das mais comuns, e míopes, críticas que se faz à Escola de Bambu: por que fazer algo na Libéria, se tanta gente precisa de ajuda aqui?

Vinícius esclarece: “Muita gente me faz essa pergunta. Mas foi algo que eu vivi. Fiz amizades, conheci pessoas, fui ajudado por elas e vi o tamanho da importância de uma escola ali. Tem gente que se orgulha de que, hoje, o Brasil pode ajudar a Europa financeiramente... e o que estamos fazendo para tentar reparar a exploração e todo o mal que a África sofreu por séculos? O que digo quando me criticam por tentar ajudar crianças na Libéria é: ‘E o que você está fazendo para ajudar as crianças no Brasil?’”.

Irineu Loturco

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Na base da ciência, Irineu Loturco Filho ajudou vários atletas a subirem no pódio dos jogos de Londres. Ele criou o Núcleo de Alto Rendimento, um lugar que une estudos científicos e esporte para fazer do Brasil uma força olímpica

 

É difícil acreditar que daquele galpão saíram tantos atletas olímpicos. Vários medalhistas. A aparência é de uma academia convencional, mas olhando mais de perto dá pra entender por que aquele espaço faz jus ao pomposo nome de Núcleo de Alto Rendimento do Grupo Pão de Açúcar, em São Paulo. O principal equipamento de trabalho por ali não são os aparelhos físicos. São notebooks e uma porção de sensores. Como diz o responsável pelo núcleo, Irineu Loturco Filho, trata-se de um “lugar de estudos científicos”. E ciência, meus caros, tem tudo a ver com esporte.

Por ali passaram nada menos que 82 atletas que representaram o Brasil nos Jogos Olímpicos de Londres. Isso inclui, por exemplo, os irmãos medalhistas do boxe Yamaguchi e Esquiva Falcão. “Eles vieram aqui de duas a três vezes por semana nos dois meses que antecederam a olimpíada”, conta Irineu. Também bateram ponto ali 50 atletas paraolímpicos que viajaram ao Reino Unido. Era toda a delegação de atletismo, responsável por 18 pódios nos jogos. “Posso dizer com absoluta certeza: temos a maior densidade de atendimento a atletas olímpicos no mundo. E se você reparar aqui é uma estrutura pequena.”

O que atrai tantos esportistas top a um lugar de pequenas proporções? É que, ao aliar ciência, tecnologia e esporte, Irineu desenvolveu um sistema para avaliar qual o melhor treinamento para um atleta. A partir de alguns testes – e muitos cálculos – ele descobre o que precisa ser mais trabalhado. E essas informações vão parar nas mãos dos técnicos. “Aí traçamos juntos um plano de treino de acordo com as necessidades. E o que mais nos interessa nesse trabalho é ajudar efetivamente no processo de formação dos profissionais que trabalham no esporte”, diz Irineu. “O mais importante é a questão do conhecimento. Com um treino eu atinjo um atleta, mas ensinando um treinador eu atinjo toda a equipe de atletas dele.” O empresárrio Abilio Diniz, idealizador do núcleo, completa: “O NAR espera criar uma consciência científica entre treinadores e atletas, fator importantíssimo no desenvolvimento de um país que sonha em se tornar uma potência olímpica”.

Um legado para o país

O Núcleo de Alto Rendimento é um grande ginásio dividido em duas partes. De um lado ficam equipamentos que lembram muito uma academia comum. No outro está uma quadra poliesportiva. Em uma das laterais há uma pista com um colchão ao final, para o treino de salto com vara – onde Fabiana Murer foi avaliada, aliás. Em uma salinha fechada fica todo o aparato tecnológico. Foram investidos
4 milhões de reais no projeto inaugurado há exatamente um ano. “Como nasceu o NAR?”, pergunta Irineu. E ele próprio responde: “O Pão de Açúcar queria desenvolver um projeto olímpico. Eu criei um”. Ele liga o notebook e abre um arquivo. “Minha apresentação para eles começava com a seguinte pergunta: ‘Como deixar um legado para o país?’. Isso é o principal.”

Agora Irineu já faz planos para expandir o projeto. Quer montar um octógono para receber lutadores de MMA – Vitor Belfort, diga-se, já frequenta o local. E mais: “No médio prazo quero investir no esporte de base. O projeto de alto rendimento fica manco sem um programa de esporte de base”, diz. E não é só porque ele sonha em ver o Brasil como potência nas próximas olimpíadas. Os motivos vão além. “Pra mim, o esporte é uma ferramenta transformadora da sociedade. O Guga, o Neymar, a Fabiana Murer, o Ayrton Senna, eles são heróis nacionais. E eles inspiram pessoas. Não inspiram só para se movimentar, inspiram o cidadão.”

Mahine Dorea

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Mahine Dorea interrompeu um período “conectada 24 horas” para se transformar numa espécie de embaixadora dos poderes do sono

 

Quando queremos dizer que determinada pessoa é muito ativa, animada, cheia de iniciativa, um clichê é recorrente: “Fulano não para”. Pois Mahine Dorea resolveu contrariar o chavão, na certeza de que, às vezes, é preciso parar para então seguir adiante. É a ideia que (não) move o Pausadamente, espaço fundado pela baiana de 34 anos radicada no Rio de Janeiro em parceria com seu marido, Fernando. Lá, em pleno centro da capital fluminense, é possível agendar massagens, terapias relaxantes (como reflexologia) ou simplesmente fazer um power nap – 20 a 40 minutos de sono durante o dia, um pit stop capaz de diminuir os níveis de estresse, estimular a criatividade e cortar a ansiedade. “Hoje em dia o 'horário comercial' não existe mais. As pessoas vão para casa depois do trabalho, mas não se desligam. É preciso ter um momento para se desconectar”, afirma a criadora do Pausadamente.

Mahine já esteve no grupo dos “conectados 24 horas”. O Pausadamente, fundado em 2009, foi a maneira que encontrou de transformar seu cotidiano, e de quebra ajudar outras pessoas a fazer o mesmo. Nascida em Salvador, mudou-se para o Rio há dez anos para trabalhar como advogada. Cinco anos de trabalho “praticamente sem pausa” a deixaram, em sua própria definição, “saturada”. Durante um período sabático em que viajou pela Europa e pela Ásia, entendeu que, às vezes, é preciso dormir para “despertar” para a vida. “Passei um tempo na Espanha e a cultura da sesta me marcou muito. As pessoas dão uma parada estratégica durante o dia e retomam as atividades com mais disposição”, conta. Na Tailândia, impressionou-se com a variedade e a popularidade dos lugares para relaxamento, oferecendo massagens e espaços para sonecas. Ao conhecer o conceito do power nap, a pausa para um sono rápido durante o horário de expediente, que no fim da década passada começou a se espalhar por metrópoles como Tóquio e Nova York, Mahine voltou para o Rio disposta a fazer o carioca pisar no freio. “Quando se fala em mudança de hábitos, discute-se muito a alimentação e a prática de exercícios, mas o sono é subestimado”, diz. “Dormir bem e relaxar mais beneficia a memória, o lado criativo do cérebro, aumenta a produtividade e melhora o relacionamento interpessoal”, defende Mahine.

 

"Quando se fala em mudança de hábito, discute-se alimentação e exercícios, mas o sono é subestimado”

 

O negócio virou sucesso, com uma clientela puxada por executivos estressados em busca de preciosos minutos de relaxamento. Empresas como o BNDES, a Comissão de Valores Mobiliários do Rio de Janeiro, o fundo de pensão Petros e a Agência Nacional do Petróleo mantêm convênios com o Pausadamente; seus funcionários ganham descontos para utilizar os serviços do espaço. Durante a visita da Trip, senhores engravatados e moças envergando sóbrios terninhos adentraram o espaço, em busca de massagens ou uma simples soneca. Mas não só eles. “Advogados, funcionários públicos, pessoas em preparação para concursos públicos... Mesmo pessoas que têm horários bem regrados, como bancários, agendam um tempinho para descansar”, detalha Mahine. A própria dona do espaço agora vive um momento não raro associado ao estresse e ao desgaste físico e mental: há oito meses deu à luz sua primeira filha, Nina. Com a transformação que operou em sua própria vida, tem muito mais tempo para passar ao lado do bebê. “Fundei o Pausadamente pensando numa atividade que iria me fazer feliz – e contribuir para que outros pudessem se reinventar também”, diz ela. “É incrível ver as pessoas chegarem ofegantes, com o semblante tenso, e saírem com outra fisionomia. É a possibilidade de dar um reboot em si mesmo.”

Marcos Boldarini

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Numa cidade com déficit habitacional de 130 mil moradias, Marcos Boldarini sonha com o dia em que seus projetos para áreas carentes (com direito a píer, quadras e até cinema ao ar livre) terão ajudado um milhão de pessoas

O campo de grama sintética reúne dez peladeiros sob o sol forte da manhã de domingo. É mais um fim de semana no Cantinho do Céu, bairro da zona sul de São Paulo, mais de 30 quilômetros distante do centro, às margens da represa Billings.

A região tinha sérios problemas. O maior deles talvez fosse a questão do esgoto. Em volta da represa, as águas que vinham das casas ficavam expostas a céu aberto. Os moradores até cuidavam de suas fossas, mas a água que vinha do tanque, da pia ou do chuveiro inevitavelmente ia parar nas ruas. “Hoje tá bem melhor do que era.”

Entregue há três anos, o quilômetro e meio que virou parque municipal devido ao decreto número 53.380, do dia 24 de agosto deste ano, tem ainda outras duas quadras de areia, uma para futebol e outra para vôlei, estrutura para projeção de filmes ao ar livre, áreas adotadas como jardins e muito verde, mas nada disso faz tanto sucesso quanto o píer. É o ponto mais requisitado, ainda mais em dias quentes.

O atracadouro para embarcações, na prática, é onde crianças e jovens do bairro se divertem com saltos mortais e piruetas. Às vezes até funciona de fato como píer para barcos e lanchas. O responsável pela transformação local é o arquiteto Marcos Boldarini, figura central para as melhorias de bem-estar e lazer para 10 mil famílias do bairro, sem contar as pessoas que atravessam o reservatório de barco, ou a nado, para usufruir da infraestrutura construída. “Uma das minhas maiores alegrias aqui foi no dia que a mãe de um menino tetraplégico me disse que agora ela pode trazer o garoto para ver a água”, comenta Boldarini, que mal conhecia a região antes de iniciar o projeto.

Aos 38 anos, casado, sem filhos, ele enxerga ali um cantinho de paz em São Paulo. Fala com orgulho de seus feitos e projeta mais mudanças na vida das pessoas daquele bairro. “Eu quero colocar wi-fi livre. Já pensou?”, conta, ainda distante de concretizar a ideia.

 

“Uma das minhas maiores alegrias foi quando uma mãe me disse que agora pode levar seu filho tetraplégico para ver a água da represa”

 

Enquanto nos deslocamos de seu apartamento na Vila Mariana, Marcos aponta para uma malcuidada praça de Interlagos. “Este foi o meu primeiro trabalho”, diz. A área, tomada pelo mato e sem grandes arroubos arquitetônicos, foi o início de Boldarini na profissão, há quase 15 anos. Filho de um operário e de uma dona de casa que virou professora aos 40 anos, cresceu na Freguesia do Ó, bairro simples da região noroeste da capital. Estudou a vida toda numa escola estadual em frente a sua casa e, aos 16 anos, decidiu fazer faculdade de arquitetura. Cursou na Universidade Braz Cubas, em Mogi das Cruzes, há mais de 60 quilômetros da capital, trajeto que ele percorria diariamente. “Eu era fascinado pelo fluxo da cidade, pelas mudanças de ritmo da noite para o dia. E descobri que poderia estudar isso com a faculdade de arquitetura e urbanismo.”

“Gisele Billings”

Chegando ao Cantinho do Céu, passa pela casa da sorridente dona Maria de Lourdes Oliveira Mendonça, que, aos 72 anos, fala com orgulho da plantação em frente a sua casa. “Essas árvores aqui foi tudo minhas mãozinhas que plantou.” Ela abraça o arquiteto, que pergunta como vão os filhos e Sofia, sua cachorra de estimação. “Sofia está lá no fundo. Está mais velha do que eu.” Ao ver a equipe de filmagem do TV Trip, a senhora faz troça. “Será que é alguma Gisele Billings?” Mãe de nove filhos, enviuvou logo que se mudou para o endereço. Tecnicamente, sua residência seria uma das removidas, mas nem a casa nem o plantio de dona Maria de Lourdes foram retirados. As árvores estão todas lá, verdes e fazendo sombra. Boldarini aponta para uma delas, praticamente no meio do caminho, e explica: “Nós modificamos o projeto aqui para poder manter esta árvore, por isso você vai andando e tem trechos mais estreitos”.

Esse é um dos exemplos de mudanças que precisam ser feitas em trabalhos desse tipo. No caso, especificamente, uma paralisação fez com que um trecho ainda não tenha sido finalizado. O motivo: duas famílias, localizadas bem no meio do parque, não entraram em acordo com a prefeitura inicialmente e fizeram com que a obra parasse. Quando a negociação se desenrolou, meses depois, o dinheiro inicial chegou ao fim. Conclusão: esse trecho será feito apenas na segunda fase, prevista para daqui a alguns meses. Para os moradores que precisam se retirar de seus lares, há duas saídas: receber o dinheiro pela indenização do imóvel ou o subsídio da prefeitura até a construção de um conjunto habitacional próximo.

Futebol e moicano

Esse é o maior trabalho da Boldarini Arquitetura e Urbanismo, que tem uma cartela com mais de 20 projetos entregues, em dezenas de municípios, a maioria deles em parceria com a prefeitura de São Paulo, passando pelas gestões de Celso Pitta, Marta Suplicy e José Serra/Gilberto Kassab. Até agora já tem um quilômetro e meio pronto, mas os planos são para mais de sete.

 

“Eu era fascinado pelo fluxo da cidade, pelas mudanças de ritmo da noite para o dia. e descobri que podia estudar isso”

 

Do outro lado do reservatório de água está começando a ser construída outra obra pensada por Boldarini. No bairro do Pabreu, há um plano de urbanização e habitação para mais 800 famílias. “O dia que eu atender 1 milhão de pessoas, dou uma festa”, brinca o arquiteto.

Em seu trabalho mais recente, um projeto de urbanização em quatro bairros do município de São Bernardo do Campo, tem feito assembleias com a comunidade para criar, acima de tudo, um local que assista as famílias que ali residem. As reuniões tem centenas de pessoas, que opinam e comentam sobre as melhorias locais. “Nem sempre nós conseguimos envolver a comunidade, mas a gente vem tentando incorporar isso na metodologia do nosso trabalho”, que tem como tripé os seguintes elementos: o que o grupo de Boldarini vê no local, o que a comunidade lhe diz e o que é preciso fazer.

O arquiteto tenta criar na aproximação com o bairro uma vida melhor para as pessoas. Um exemplo é o bairro de Silvina Audi, também em São Bernardo, com 437 novas habitações. Talvez o milhão não esteja tão longe assim.

Premiado em outubro deste ano com o projeto de urbanização de 15 mil metros no Jaguaré, na zona oeste paulistana, Boldarini deu um grande exemplo de transformação num local inóspito. Com desnível de 35 metros, teve que se desdobrar para pensar em saídas viáveis para um relevo tão íngrime. Conclusão: conseguiu fazer uma quadra poliespostiva, um centro comunitário e um projeto lúdico, colorido e bonito para a região. “Eu não acredito numa aceitação de 100%, porque esses pequenos descontentamentos te fazem refletir e melhorar o seu trabalho.”

Um sorveteiro passa pelo píer vagarosamente. Boldarini vai atrás e paga um real por um picolé, um pouco aguado, de milho-verde. “Isso é muito coisa de periferia, esses sorvetes de milho-verde e amendoim você só encontra assim”, comenta, com certa reverência. Na caminhada, passa em frente à estrutura preparada para o cinema. Dois arcos de cor laranja com sutis ganchos para a tela podem ser facilmente confundidos com uma escultura. Ali já foram projetadas duas sessões. Para que elas aconteçam é preciso apagar as luzes dos postes, fazer uma gambiarra para puxar a eletricidade de outro ponto e alugar um equipamento de som, o que dificulta que a prática seja costumeira.

Ao ser indagado sobre o quanto acha que transformou a vida dessas pessoas, Boldarini responde, quase sem raciocinar: “Às pessoas que me fazem esta pergunta, trago-as aqui para ver o que é este lugar hoje”. Boldarini fez com que famílias tivessem orgulho de seu bairro. “É importante chegarmos nas comunidades carentes, nas pessoas que talvez nem saibam mensurar o nosso trabalho. Os lugares não estão soltos no meio do nada. Eles têm um contexto, uma história e suas necessidades.”

Lourenço Bustani

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Filho do embaixador do Brasil na França, Lourenço Bustani fez carreira ajudando empresas brasileiras a desenvolver projetos que conciliem o lucro com um impacto social positivo

 

Enquanto milhões de brasileiros acompanhavam na TV o último capítulo de Avenida Brasil, Lourenço Bustani não estava nem aí para a novela. Quem matou Max não era algo que provocasse curiosidade no empresário. Naquela noite de sexta-feira ele estava na casa do músico Marcelo Yuka, na Tijuca, bairro da zona norte carioca, com a atenção focada em outro assunto. Na sala de estar, os dois conversavam sobre a criação de um espaço voltado para discutir soluções para problemas do país. O fundador e ex-baterista do grupo O Rappa, vice na chapa de Marcelo Freixo – que disputou as eleições no Rio de Janeiro este ano –, queria os conselhos do amigo para seu projeto em gestação, que batizou de Albergue das Ideias. “Imagino o Albergue como um lugar onde pessoas com diferentes formações possam se hospedar e passar uma temporada discutindo soluções para determinadas questões. Essas propostas depois vão ser lançadas para a sociedade”, explicou Yuka.

“Acho que o projeto deve buscar ter um impacto real na vida das pessoas. O que sair de lá precisa ter resultado prático. Do contrário, será só um espaço de divagação”, palpitou Lourenço. Yuka devolveu em forma de elogio: “É por isso que eu gosto desse cara! Meu universo é muito romântico, me falta esse pragmatismo”. Os dois se conheceram há um ano, quando Lourenço procurou o músico para um trabalho. Descobriram interesses em comum e mantiveram o contato. “Rolou uma conexão imediata”, conta o empresário que, após o encontro no mês passado, tornou-se parceiro e cocriador do Albergue das Ideias e convidou alunos da Escola São Paulo para desenvolverem um plano de negócios para o projeto.

Há seis anos Lourenço fundou, ao lado do publicitário Igor Botelho, a Mandalah, empresa que presta consultoria na criação de produtos, serviços e estratégias que buscam aliar o lucro das empresas ao propósito de melhorar a vida das pessoas, criando um círculo virtuoso em que todos ganhem. O portfólio de clientes inclui marcas como Nike, GM, Petrobras, Pepsi e Natura; instituições como Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos e Sebrae-MG; ONGs como Instituto Ayrton Senna; e projetos educacionais como Colégio Bandeirantes e Escola São Paulo.

Em maio entrou em 48º lugar no ranking deste ano das cem pessoas mais criativas no mundo dos negócios da revista americana Fast Company. A nomeação atraiu os holofotes e o levou a dar uma série de entrevistas a jornais, revistas e programas de TV. “Houve exagero na forma como fui apresentado por parte da mídia. Por outro lado, estar ali abriu portas para a Mandalah e triplicou a quantidade de pessoas que nos procuram para conversar”, explica o rapaz de 32 anos.

“Lourenço tem a capacidade de colocar as coisas em prática, mas com sensibilidade e inteligência emocional”– Marcelo Yuka

Nascido em Nova York, filho de diplomatas (o pai, José Maurício Bustani, é o embaixador do Brasil na França), Lourenço passou a infância pulando de um lugar para outro, o que lhe proporcionou uma visão multicultural e o domínio de quatro idiomas. Formado em ciência política e administração pela Universidade da Pensilvânia, em 2004 ele se mudou para o Brasil, onde fincou raízes. “Tive uma crise de identidade comum entre filhos de diplomatas. O Brasil era o lugar onde eu passava os meus melhores dias nas férias, mas eu não conhecia a realidade brasileira de fato. Achava incoerente me apresentar como brasileiro. Decidi então vir para cá e encontrei um terreno fértil para implementar coisas novas.”

Hoje a Mandalah possui 45 funcionários em seis cidades: São Paulo, Rio de Janeiro, Nova York, Cidade do México, Berlim e Tóquio. “Por ter morado em tantos lugares, minha rede de contatos é ampla, o que facilita desenvolver projetos em qualquer lugar. Basta postar uma mensagem no Facebook que recebo um monte de indicações. Isso é ótimo para o trabalho e para mim, que me alimento das perspectivas dos outros”, diz. A sede da empresa é uma casa no bairro paulistano da Vila Madalena, onde Lourenço despacha ao lado de seu fiel escudeiro Shivah, um golden retriever que é a mascote do lugar.

E o que diferencia a atuação da Mandalah da de outras empresas de consultoria? “Nossa proposta é trazer um olhar mais humanista para o mercado, que costuma enxergar as pessoas como meros consumidores. Buscamos conscientizar as empresas sobre o papel que elas exercem na sociedade para que tomem decisões baseadas não apenas no lucro, mas também no impacto social de suas ações. Uma ideia só é inovadora se melhorar a vida das pessoas”, teoriza.

 

“Uma ideia só é inovadora se melhora a vida das pessoas de verdade”

 

Em termos práticos, isso se traduziu, por exemplo, em um trabalho para a Nike no Rio de Janeiro, de olho na Copa de 2014 e na Olimpíada de 2016. Após conversar com atletas, líderes comunitários, empreendedores sociais, músicos e artistas plásticos, a Mandalah apontou que a cidade vive um momento de integração e a Nike poderia envolver diferentes comunidades em seus projetos. A recomendação foi de que no lugar de ações espetaculares pontuais de marketing, melhor seria participar de atividades que deixem um legado para a cidade, mesmo após o término dos eventos esportivos. “Esse olhar foi fundamental para descobrirmos a melhor forma de nos aproximar dos cariocas. O trabalho deles foi o embrião de uma série de ações que depois desenvolvemos internamente”, explica João Chueiri, Brand Manager da Nike no Rio. Entre os projetos que a marca patrocina atualmente estão torneios de futebol para jovens de baixa renda como os do Futebol Social, reformas de rampas de skate e a escola de surf do Favela Surf Clube.

Revolução silenciosa

Outro trabalho foi um estudo global para a GM sobre o futuro da mobilidade urbana. “Fomos para Coreia do Sul, Suécia, Estados Unidos e Inglaterra. Ouvimos mais de 30 especialistas, acadêmicos e governantes, e o resultado foram 32 propostas de inovação para a indústria automobilística”, conta Lourenço. Uma equipe da GM estuda a implementação das medidas.

Quem recentemente procurou Lourenço para uma conversa foi o grupo EBX, do empresário Eike Batista, que atua nas áreas de mineração, energia, petróleo e logística. A diretoria responsável pelas relações com as comunidades o chamou para conhecer seu trabalho. “Me disseram: ‘Mas você vai se reunir com a EBX? Não tem nada a ver com a Mandalah!’. Na verdade, eu acho ótimo que nos procurem. Existe uma colisão de paradigmas entre nós e a EBX, mas isso não impede que possamos criar uma agenda compartilhada”, afirma.

Otimista, Lourenço acredita estar em curso uma revolução silenciosa de pessoas que querem mudar o mundo dentro de suas próprias estruturas. “Vejo que existe uma comunidade que antes ficava meio oculta, passava despercebida. Diariamente recebo e-mails de pessoas que se identificam com os nossos valores e falam: ‘É isso aí, tamo junto’. Isso não tem preço”.


Fabiano Prado Barretto

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O lixo estrangeiro encontrado no litoral baiano inspirou Fabiano Prado Barretto a criar a Global Garbage. Uma década depois, a ONG é referência mundial na preservação das praias e não apenas tem salvado a vida de mamíferos marinhos e mantido areias mais limpas, mas melhorado a vida da população praieira

A visão de embalagens ou garrafas PET na areia é só uma pequena amostra do criminoso e globalizado problema do lixo marinho. Moradores têm sua cota de responsabilidade, é verdade, mas, em boa parte, o lixo encontrado nas praias brasileiras vem de longe. Muitas vezes, trazido por correntes oceânicas, viaja milhares de quilômetros, até aportar por aqui. “A mesma corrente que ajudou Amyr Klink em sua travessia do Atlântico também traz toneladas de lixo para o litoral brasileiro, majoritariamente para a faixa de mar da Bahia”, conta o fotógrafo Fabiano Prado Barretto, que fundou em 2003 a Global Garbage, ONG patrocinada pela Lighthouse Foundation da Alemanha e que hoje mantém uma série de projetos e ações dentro e fora do Brasil, todos voltados para minimizar o impacto do vasto rol de dejetos que é genericamente chamado de lixo marinho.

A sujeira na areia é apenas o mais flagrante entre os danos. O lado mais cruel talvez seja a morte anual de centenas de animais marinhos por conta da ingestão de sacos plásticos ou embalagens confundidas com algas, lulas ou outro alimento. Não há censo oficial dessa carnificina e a real causa da morte só é conhecida por meio de uma autópsia, o que raramente ocorre. Mas, para se ter uma ideia, segue a lista de mortes noticiadas pela imprensa em outubro último e cuja causa tenha sido comprovadamente o lixo marinho: na Praia Grande (SP), dez tartarugas-verdes não resistiram à ingestão de objetos plásticos; duas outras apareceram mortas em João Pessoa (PB) e mais duas em Icapuí (CE); um golfinho surgiu morto no Piauí, com objetos no estômago. E, por muito pouco, 3 tartarugas, 11 pinguins e 4 lobos-marinhos não se foram em Rio Grande (RS) após a ingestão de lixo – foram resgatados agonizando, para serem tratados e devolvidos ao mar dias depois. Em um registro internacional, o corpo de um cachalote de 17 metros de comprimento foi encontrado no mar Egeu, e a autópsia encontrou cem sacolas plásticas em seu aparelho digestivo.

Outra preocupação é o lixo produzido nos navios em viagem. Aí entra o lado político da entidade, um lobby ambiental. Até ano passado não havia legislação detalhada sobre o lixo de barcos e navios. “O correto é a autoridade portuária conferir quanto de lixo foi produzido em cada embarcação, levando em consideração o tempo que o navio ficou no mar e o tamanho da tripulação”, explica Fabiano. A atuação da ONG junto a uma série de agentes (autoridades portuárias, Anvisa, marinha etc), ajudou na formulação da legislação inédita. O lixo produzido em navios, por lei, requer a mesma atenção do lixo hospitalar. “Imagine se um navio asiático traz dejetos contaminados com o vírus da gripe aviária, por exemplo, e esse material vai para um lixão comum. Causaria uma epidemia em poucos dias.”

 

Em 2001, Fabiano fez uma caminhada pelo litoral norte baiano e apanhou e catalogou dezenas de embalagens de 26 países diferentes em uma faixa de apenas 10 km de praia. O trabalho foi parar até no Jornal Nacional e tornou-se a semente da Global Garbage

 

Casado com uma alemã e morando em Hamburgo, Fabiano está preparando um monitoramento internacional do lixo marinho, conectando autoridades e informações da comunidade de países falantes da língua portuguesa. É o tipo de trabalho que foi feito no Brasil e que pode subsidiar legislações e demais atos governamentais de combate aos dejetos jogados ao mar. “Estamos virando referência internacional e levando essa discussão aonde ela não existe, como, por exemplo, Angola.” Nessa mesma frente, a Global Garbage mantém relação próxima com a Unep, órgão das Nações Unidas para a defesa do meio ambiente – Fabiano foi convidado para participar do painel da Unep na Rio+20 e sua ONG traduz livros do órgão da ONU para o português.

Turismo, prostituição e folia

No distante verão de 2001, Fabiano caminhava pelo litoral norte da Bahia e ficou chocado com a quantidade de lixo estrangeiro na areia. Na primeira delas, catou e catalogou dezenas de embalagens de 26 países diferentes em apenas 10 quilômetros de praia. O trabalho foi parar até no Jornal Nacional e tornou-se a semente da Global Garbage, que hoje tem atuação em Hamburgo (onde Fabiano coordena as ações globais) e no litoral baiano, aonde chega a maioria do lixo marinho, trazido pelas correntes. Com uma década de atuação, a ONG desmembrou-se e gerou filhotes como a Capitães de Areia, a Associação de Surf e Salvamento Aquático da Linha Verde e o projeto Lixo Marinho, todos sediados na Bahia.

Muito da atuação desses braços é junto à comunidade local e extrapola a questão do lixo. Lá atrás, logo no começo do seu trabalho, Fabiano percebeu que os moradores e turistas brasileiros não tinham ideia da importância da participação deles nessa cadeia. “Ficavam bravos quando sabiam do lixo que vinha da Europa, mas jogavam uma latinha no mar durante um passeio de ferry boat.” Hoje esse trabalho de conscientização está avançado, chegou às escolas, rendeu frutos e diversificou-se, por exemplo, na forma de cursos de formação da população carente local. “A Onda Verde forma profissionais para o setor de turismo, evitando que esses jovens caiam no tráfico ou na prostituição masculina e feminina, muito forte principalmente perto de resorts.”

Em outro campo de atuação, uma iniciativa pessoal recente de Fabiano que fez barulho foi a Fundo da Folia, em parceria com os também surfistas baianos Bernardo Mussi (campeão brasileiro de longboard em 1993) e Francisco Pedro. Nos últimos três Carnavais, o trio registrou uma montanha de latinhas de cerveja, abadás e outros dejetos que tomavam o fundo de toda a faixa de mar de Salvador nos dias de festa. As imagens correram a internet e chamaram a atenção da Ambev (que já patrocinou o Carnaval por meio da Skol e hoje o faz pela Brahma), que contratou mergulhadores para ajudar na limpeza, instalou pontos de coleta e fez acordos com associações de catadores.

Pranchas na luta

Em meio a essa teia de ativismo, entra o surf. Antes da Global Garbage, Fabiano trabalhou de 1991 a 2000 na União dos Clubes Escolares de Surf, a Uniclubes, que também ajudou a fundar. Lá, conheceu e viu nascer a carreira de grandes nomes do surf nacional, como Danilo Couto, Marcio Freire e Yuri Soledade. Os três moram no Havaí e são conhecidos como mad dogs por serem os pioneiros em pegar no braço ondas gigantes que, até então, eram encaradas apenas no tow-in, ou seja, com o reboque de um jet-ski. Danilo, Marcio e Yuri, além de outros expoentes baianos como Roberto Vieira e Armando Daltro, usam adesivos da Global Garbage de graça em suas pranchas, difundindo a causa. O próprio Fabiano, para combater a abstinência de mar na vida alemã, tem feito remadas cada vez maiores. Empreende longas jornadas de stand up pelo rio Elba e agora prepara-se para travessias maiores, como a entre a ilha francesa da Córsega e a italiana Sardenha. Mas não perde o foco: “Mesmo aqui tem muito lixo no mar e nos rios”.

Denilson Thyola

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O Favela Surf Clube, fundado por Denilson Thyola, faz das ondas uma opção para os meninos do morro do Cantagalo. Quatorze mil beneficiados depois, também o futebol, a música e o vôlei entram na receita contra os apelos do tráfico

É manhã no morro do Cantagalo. Moradores sobem e descem freneticamente os degraus que ligam a maior favela da zona sul a Ipanema. Denilson Estacio Cruz, o Thyola, é um deles. “Minha mãe foi umas das primeiras moradoras do morro”, conta. “Tenho 11 irmãos, todos bem-criados, gente de bem. Ninguém foi para o tráfico”, garante. Nessa batalha pra não “perder” os jovens do complexo para o canto da sereia do comércio ilegal de drogas, Thyola, aos 40 anos, é ponta de lança. Em 2000 fundou a ONG Favela Surf Clube, que oferecia aulas do esporte para garotos da área. Mais de 14 mil meninos e meninas de diferentes idades já passaram pelo projeto, que cresceu e se transformou. “Hoje atendemos 600 crianças e jovens em quatro frentes: surf, vôlei de praia, percussão e futebol de areia”, contabiliza João Paulo Veiga, diretor executivo do FSC e velho amigo do fundador da organização não governamental.

Para entender melhor como surgiu a entidade, voltemos a um passado distante, quando nosso personagem tinha 11 anos. “De cima do morro eu ouvia as ondas. Mas só vi o mar pela primeira vez quando subi numa laje e, lá de cima, descobri o que fazia aquele barulho.” Até então Thyola não podia ir à praia sozinho, sua mãe tinha medo de que se afogasse. “Eu não sabia nadar, mas não tinha medo.” O encontro rendeu frutos: o garoto não saiu da praia, aprendeu a nadar e a pegar onda e, nos anos 80, firmou-se como surfista respeitado no Arpoador, competindo em categorias amadoras e acumulando troféus.

O caminho para a profissionalização parecia natural, mas aí veio o futebol. Adolescente bom de bola, Thyola passou numa peneira e jogou nos juniores do Fluminense. Ficou pouco tempo, mas o suficiente para chamar a atenção de um olheiro e ir parar na Alemanha. Lá jogou num time pequeno, também nos juniores, mas a saudade o fez voltar logo. “Quando voltei formei família e fiz quatro filhos. Minha vida mudou.”

O futebol, contudo, permaneceu forte em sua vida. Além de esse esporte ser outro dos pilares do Favela Surf Clube, hoje Thyola ainda tira dele parte de seu sustento. Há dois anos assumiu a direção do Dínamo, um dos times de futebol de praia mais tradicionais do Rio. Logo em seu primeiro ano, a equipe foi campeã carioca na categoria até 23 anos. “Há 18 anos o Dínamo não vencia um campeonato. Teve um sabor especial.”

Marcelo Correa

Pikachu, que se prepara pra ir ao Havaí, Thyola e seu filho mais velho, Denilson

Pikachu, que se prepara pra ir ao Havaí, Thyola e seu filho mais velho, Denilson

Além do surf, do futebol de areia e do vôlei de praia, a percussão é ferramenta de inclusão social. Para se ter uma ideia, em 2013, a bateria da entidade, formada por garotos entre 7 e 17 anos, vai abrir pelo segundo ano consecutivo o desfile das campeãs do primeiro grupo do Rio de Janeiro.

Profissão: prancha

Outro benefício especialmente importante para a molecada do complexo Cantagalo-Pavão-Pavãozinho – onde vivem quase 30 mil pessoas – são as oficinas de capacitação profissional da ONG. Os jovens aprendem a montar e consertar pranchas de surf e depois são contratados por empresas parceiras, como a Pranchas TBC ou a fabricante de barcos Holos do Brasil, onde trabalham na lixação.

Mais: como pré-requisito para todos os meninos e meninas, está o bom rendimento escolar. “Aqui eles podem escolher entre virar atleta profissional, fabricante de pranchas ou professor de surf, entre outras atividades”, enumera Thyola, antes de ressalvar: “Mas pra participar não basta estar na escola. Tem que ter notas boas”. E o controle é sério. Boletins são conferidos a cada dois meses, e as notas são repassadas até para a Federação de Surfe do Rio de Janeiro. Ou seja, assistir às aulas, estudar, fazer a lição de casa e conquistar boas notas é exigência não apenas para ser atendido pelo FSC, mas também para competir. “Se as notas vêm ruins, chamamos o garoto pra conversar, os pais... fazemos o acompanhamento”, explica João Paulo, o JP na entidade desde sua fundação, há 13 anos.

Thyola já esteve nas páginas da Trip duas vezes: ao lado de amigos surfistas do Cantagalo, em 1988, anos antes de a ONG existir, nos primórdios da revista (#8), e em 2010 (#186), quando Luciano Huck levou um dos garotos, Naamã, então com 14 anos, pra surfar no Havaí e conhecer Kelly Slater. Foi também no Caldeirão do Huck que o Favela Surf Clube ganhou reforma completa, na estreia do quadro “Lar, doce lar”, em 2010. A vitrine chamou a atenção de grandes empresas, como a Nike, que patrocina a escola de surf, e a rede de hotéis Accor, que apoia a oficina de pranchas. “É dessa forma que conseguimos manter as atividades, todas grátis, para a comunidade.”

“Pra participar tem que ter notas boas”. Todos os boletins são conferidos

Os membros da ONG, contudo, ainda não conseguem viver do trabalho social. O fundador do FSC ganha um extra como técnico de futebol amador e juiz de surf.
JP, por sua vez, é advogado. Nascido e criado no Arpoador, enturmou-se desde cedo na areia com a garotada do Cantagalo.

Guerra e paz

Hoje o Cantagalo é “pacificado”. Uma UPP foi aberta no morro no final de 2010, e outras iniciativas fortes, como o AfroReggae, também atuam por lá, ajudando a equilibrar o jogo contra o tráfico. Mas nem sempre foi assim. “Vi gente que eu conhecia morrendo na minha frente”, lembra Thyola. Nesse período pré-Unidade de Polícia Pacificadora, o maior problema eram as invasões. “Bandidos de outras facções vinham de outros morros e chegavam aqui dando tiro”, conta o fundador do FSC. Com a polícia, relembra, também não era fácil: “Muitas vezes subiam o morro dando tiro sem mirar, muita gente inocente morreu por bala perdida... era horrível. Mas agora, depois da pacificação, as senhoras podem ficar conversando na rua até mais tarde, e as crianças brincam nas ruas sem medo. O tráfico não tem mais o poder de antes”.

“Nunca tivemos problemas com traficantes”, diz JP. “Acho que eles mesmos acabam vendo os benefícios pro morro e, às vezes, até pra própria família deles. O filho de um soldado do tráfico pode estar sendo atendido por nós.” Mesmo antes das UPPs, segundo Thyola: “Eles nos respeitavam. A gente não se metia na vida deles e eles não se metiam na nossa”.

“Na praia não existe diferença entre rico e pobre, preto ou branco. Somos todos iguais”

Thyola e JP contam que vitórias sobre o comércio de drogas são comuns na ONG que coordenam. “Tinha um garoto aqui no morro que tava indo pro lado errado. Um dia o encontrei carregando um fuzil e falei do nosso time de futebol. No começo, não mostrou interesse. Até o dia em que o campeonato começou e ele apareceu no local do jogo”, conta Thyola, que conseguiu inscrevê-lo, mas só depois de fazê-lo prometer trocar o fuzil pela bola. “Ele virou nosso lateral direito e juntos fomos campeões cariocas.” Mas nem tudo dá certo. Um grande amigo dos nossos entrevistados, conhecido como Doidão (e também citado na Trip #8), largou o surf, caiu no tráfico e foi preso. Cumpriu 12 anos de cana, saiu, voltou pro crime e foi preso de novo. “Era um garoto bom, mas infelizmente escolheu o caminho errado e se perdeu”, lamenta Thyola. Hoje, Doidão está preso em Bangu. “Ele se arrependeu das escolhas erradas que fez, mas agora é tarde.”

Boas histórias

O que ilumina mesmo o rosto do nosso entrevistado, contudo, são boas histórias, como a do surfista profissional Simão Romão, duas vezes campeão de etapas do WQS (mundial de acesso à categoria principal, o WCT) no Arpoador. Romão nasceu no Cantagalo e começou no esporte apoiado pelo Favela Surf Clube. Hoje articula o Bonde do Simão, projeto que pretende levar ao Havaí, em janeiro de 2013, Pikachu, Mancini e Nem, três adolescentes promissores do FSC. “Estamos conseguindo doações de empresas, vendendo camisetas especiais, fazendo de tudo. Acho que vai dar”, anima-se JP. “Os moleques mal podem esperar, não tão nem dormindo direito. Comigo também foi assim, quando fui surfar na Indonésia voltei com outra cabeça”, diz Thyola.

Posando para as fotos que ilustram esta reportagem, Denilson Estacio Cruz analisa um dos ingredientes do sucesso do Favela Surf Clube: “Na praia não existe diferença entre rico e pobre, preto ou branco. Somos todos iguais”. A seu lado, o amigo do peito JP, nascido no lado rico daquele pedaço, concorda: “Na areia tá todo mundo de bermuda, sem camisa e uma prancha embaixo do braço. É o ambiente mais democrático de todos”.

O Poeta pornográfico dos imóveis

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Ciro Hamen

As placas da Durante Imóveis

As placas do Seu Argemiro: "Você por acaso se separou ou teve uma desilusão amorosa, está com muita dor em geral, este é o momento. Só que você precisa ser 'bem dotado', porque a coisa nesta rua é brava. Tem muita coisa boa, entendeu? Então compre este apartamento..."

Argemiro Durante teve uma ideia para fazer o seu negócio se destacar. Quatro anos atrás, o dono de imobiliária em São Vicente começou a escrever placas diferentes para atrair a atenção do público. O conteúdo - muitas vezes picante - das lousas com os anúncios de apartamentos atrai os olhares dos moradores, turistas, motoristas e banhistas que passam por ali diariamente (o estabelecimento é localizado a uma quadra da praia do Itararé). Apelidado de "poeta" por alguns, Seu Durante - como é conhecido - responde brincalhão: "Poeta da pornografia, só se for".

 

"Você que é romântico e muito garanhão! Este é o apartamento certo para você! Com vista total para o mar e ninguém na frente para atrapalhar seu horário sexual", diz o começo de um dos anúncios, sobre um imóvel na Ilha Porchat

 

A corretora que às vezes escreve as mensagens criadas por Argemiro fica constrangida com muitas das palavras usadas por ele. No entanto, constrangimento não parece fazer parte da vida do homem de quase 70 anos. Certa vez, enquanto escrevia uma de suas placas, em cima de uma escada, sua bermuda que não estava muito bem amarrada caiu e ele deu um pequeno "show" para os clientes da churrascaria Anchieta, que fica do outro lado da rua. Continuou escrevendo e só levantou a bermuda quando terminou. "Ainda bem que a cueca era boa", diverte-se.

Sentado na mesa de seu escritório, ele mostra disposição para os negócios. Folheia e lê com paixão parte de sua obra, que ele mantém guardada em pastas, e mostra reportagens em jornais locais falando sobre suas placas. A inspiração para os textos vem no momento. "Escrevo e meia hora depois já nem lembro mais", conta. Os alvos preferidos das brincadeiras do corretor são as sogras e os cunhados, mas em uma das placas em exibição atualmente ele provoca até Maradona e os argentinos. "Só não mexo com traficante e político", diz.

 

Os alvos preferidos das brincadeiras do corretor são as sogras e os cunhados, mas em uma das placas em exibição atualmente ele provoca até Maradona e os argentinos. "Só não mexo com traficante e político", diz.

Família

Falante e expansivo, Argemiro é um típico descendente de italianos, quase um personagem de filme de Martin Scorsese. Fala muito sobre a família, em especial sobre o irmão Airton Durante, "Clínico dos imovéis" no Guarujá, que o colocou no ramo imobiliário em 1970. Na época, Argemiro era taxista e o irmão o chamou para trabalhar com ele em São Vicente. Fez sucesso e nunca mais deixou de trabalhar com imóveis.

O corretor também escreve muitas mensagens homenageando o pai, o que uma vez levou um senhor a entrar na imobiliária e com os olhos marejados agradecer. "Nunca tive a coragem de escrever uma coisa dessas para o meu pai. Muito obrigado", disse emocionado.

É possível que toda a desinibição venha da época em que trabalhou como ator, no começo da década de 60. Ele fazia parte do Circo Teatro Liendo, onde participou de uma peça ao lado de Tonico e Tinoco. Galanteador, ele diz que "tinha que sair depois dos espetáculos pois as mulheres ficavam em cima". Certa vez fugiu com uma das companheiras de palco para Ilhabela e esse foi o fim de sua carreira artística. Casado desde 1964 com a dona Dilma, Argemiro tem duas filhas, Kátia e Andréia. Esta última trabalha com o pai e já arriscou escrever algumas palavras para suas placas, mas não teve a aprovação do seu Durante. "Era muito coisa de mulherzinha", explica.

Marahu

Atrás dele, a parede inteira do escritório é coberta por uma pintura do Edifício Marahu, prédio onde vive e atua como subsíndico. Uma das construções mais famosas de São Vicente, obra do arquiteto Lauro da Costa Lima, o Marahu é a outra grande paixão de Seu Durante. Fala com orgulho sobre os famosos que já tiveram apartamentos no lugar, como Jânio Quadros e o ex-presidente do Corinthians, Vicente Matheus.

 

Sem preconceitos, Durante afirma que a maior parte de seu público é GLS. "Qualquer dia ainda vou sair na parada gay", brinca o homem cujo negócio é localizado em uma cidade famosa por sua parada e por sua noite gay.

 

Em seu computador há uma aba sempre aberta com câmeras que monitoram em tempo real todos os ambientes do edifício. Construído nos anos 50, o desenho modernista do prédio impressiona, e a plástica e funcionalidade é de deixar as atuais construções da Baixada Santista com inveja.

Já no momento de despedida da reportagem, o ex-prefeito de São Vicente e atual deputado federal Márcio França passa na frente da imobiliária. Seu Durante não perde a oportunidade de cumprimentar o conhecido e lamenta que o seu filho, Caio França, inicialmente favorito na última eleição para a prefeitura da cidade, tenha perdido no primeiro turno. França devolve o cumprimento ao dono da imobiliária, orgulhoso de suas placas que já viraram atração turística da primeira cidade do Brasil. 

 

*Ciro Hamen é jornalista, escreve para o site Ó, Minha Santos e dirigiu o curta "Meninos da Fila"

O xerife de Camburi

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Surfista sério, ambientalista respeitado, figura clássica do litoral norte de São Paulo: conheça a história de Fredê, o paulistano que largou a metrópole para cuidar da Mata Atlântica

Edson Marques Lobato dirige seu jipe vermelho com uma prancha presa à traseira acenando quase o tempo todo. Cumprimenta boa parte das pessoas que cruzam seu caminho. Fredê, como é conhecido, tem menos de um metro e 80 de altura, cabelos brancos ganhando território entre as entradas já aparentes. Aos 52 anos mantém a forma atlética, mesmo depois de perder uma dezena de quilos nos últimos meses. Os pelos do peito já são completamente grisalhos e a testa do surfista tem mais de meia dúzia de ondas desenhadas, em formato de M, que praticamente duplicam quando ele tensiona o rosto bronzeado.

Biólogo crescido no Butantã, zona oeste de São Paulo, é parte da primeira geração de paulistanos a enfrentar o “selvagem” litoral norte. Pega onda na região há cerca de 35 anos, mas há 17 trocou a poluída metrópole por uma casa de dois andares feita de madeira em Camburi, praia de São Sebastião. “A minha decisão de sair teve três pilares: você tá parado no trânsito, o ar é ruim e a água é ruim”, lembra. “Porra, brother. Que caralho é esse?” No endereço confortável, em um refúgio de Mata Atlântica, vive com a mulher, Angela, 44 anos, o filho Kauai, 10, e com a cadela rajada Naomi, ou Naná, 5, uma mistura de pit bull com labrador. “Fredê é uma pessoa adorável, além disso é um grande surfista e um homem que batalhou e batalha muito pela Mata Atlântica”, comenta o arquiteto Carlos Motta, outro desbravador célebre da região e dono de uma casa em Camburi desde os anos 1980.

Seu apelido é reconhecido em todo o litoral como sinônimo de preservação. É o “Fredê do parque”, o “Fredê de Camburi”. Responsável por levar o termo sustentabilidade pra região, trabalha há três décadas numa incansável luta pelo meio ambiente. Nos anos 90, funcionário padrão da Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb) na cidade de São Paulo, criou o Projeto Praia Limpa. As sacolinhas eram distribuídas e os banhistas, que não tinham o hábito de recolher seu lixo, passaram a manter o local em ordem. A Rede Globo abraçou a causa, ajudou a promover e empresas aproveitaram os saquinhos plásticos para divulgar, suas marcas. Desanimado com o ritmo casa-trabalho que assumiu na capital, e somando a isso a morte precoce do irmão um ano mais velho num acidente de moto, resolveu mudar de ares em 1995. “Meu irmão morreu, meu trabalho tava uma merda, minha ex-namorada me enchia o saco. Decidi largar tudo e vir pra cá”, conta sem a menor sombra de arrependimento.

Instalado na casa que já havia comprado anos antes, passou a se dedicar à criação do Parque Estadual da Serra do Mar – Núcleo São Sebastião, um dos sete apêndices da unidade de conservação com 30 mil hectares. “O parque é estadual, mas o patrimônio é local”, era o mantra que o aproximava da comunidade. Fredê se tornou uma espécie de xerife, respeitado pelos moradores e temido por quem tentava dar o “gato” na lei. Passou a incomodar na mesma proporção com que cuidava do meio ambiente. “A lei ambiental de São Sebastião prevê a demolição sumária. Isso facilita muito o processo.” Mas também aumenta a possibilidade de arrumar inimigos. Os problemas mais frequentes eram os caçadores, palmiteiros e as construções ilegais, todos combatidos compulsivamente. “Eu derrubei muita casa de bacana, contrariei muitos interesses.” Alguns que até colocaram em risco sua segurança. “Já sofri ameaças, me ligaram, mandaram recado, mas nunca abaixei a cabeça. A gente entrava no mato e não tinha essa de ser pobre ou rico. Era pá-pum-pá, derrubava casa de caçador, casa de bacana, o que fosse irregular.” Mas, além de “derrubador”, atuava também como mediador de conflitos, muitas vezes avisando e conscientizando a população dos problemas que ela causaria desmatando, matando os animais ou construindo ilegalmente. “O Fredê é um cara do mar e tem muita preocupação com a natureza. Ele dedicou muitos anos à preservação daqui”, comenta Wagner Pupo, shaper que no último ano fez pelo menos cinco pranchas para o amigo.

 

"Tirar o Fredê do parque estadual é como perder o Neymar para o futebol da Sibéria", compara o Secretário do Meio Ambiente de São Sebastião, Eduardo Hipólito

 

Volta, Fredê
Os últimos meses não foram fáceis. Em setembro, Fredê foi destituído do cargo e recolocado na Cetesb sem explicações muito claras – oficialmente, ele foi apenas um entre vários gestores demitidos ou transferidos para atender a “uma nova estratégia administrativa para agilizar processos”, como diz o comunicado da Fundação Florestal. Nem o atual gestor do parque, Gustavo Freitas Cardoso, soube explicar para nossa reportagem os motivos da mudança: “Não tenho informações administrativas suficientes”, diz. “Mas gostaria de ter.” A boataria dava conta de que sua saída teria sido motivada por um flagra quando estava surfando em horário de trabalho. Ao falar da acusação, o M na testa de Fredê duplica: “Há quatro anos esse cara [prefere não mencionar o nome] fez uma foto minha e de uma amiga na praia com a prancha. Sem hora, sem nada. Olha que louco, nesse mesmo dia eu estava reunido com 20 monitores do ecoturismo. São denúncias vindas da mesma pessoa e sem cabimento algum”.

Mas, se não foi por causa do surf, foi por quê? Fredê não sabe a resposta e diz que isso é o que mais o incomoda. “Fiquei mal, não conseguia dormir, tomava tarja preta. Estou de licença médica, emagreci pra caralho, mas, tudo bem, vai passar. Volto para a Cetesb no início do ano e pretendo continuar com o trabalho.”

Em 28 de setembro, um dia depois de sua recolocação, uma moção de repúdio endereçada ao secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo, Bruno Covas, foi aberta e popularizada como “Volta, Fredê”. Até o fechamento desta edição eram 587 assinaturas. “Foi um Neymar que a gente perdeu para o futebol da Sibéria”, compara o secretário do Meio Ambiente de São Sebastião, Eduardo Hipólito. “Fredê criou operações que integravam setores que não se falavam. O novo gestor vai precisar de, no mínimo, cinco anos para retomar alguma coisa do que ele vinha fazendo. Foi uma falta de consideração absurda.”

Também frequentadora de Camburi, a atriz Maria Fernanda Cândido é outra que sai em defesa de Fredê: “Falar da questão ambiental hoje é praticamente uma obrigação, mas realizar o trabalho que ele fazia há quase 18 anos é prova de que é um sujeito especial, inovador, comprometido. É um homem de visão, que já demonstrava lá atrás essa consciência do mundo”. Ao ser indagado se o retorno é possível, Fredê é enfático e usa um clichê: “Eu nunca digo nunca”.

Serra no mar
Surfista da velha guarda, Fredê visitou com sua prancha Indonésia, Costa Rica, Peru e Havaí, onde ficou um ano antes de montar o parque em São Sebastião. Ele circula pelas praias da região desde a época em que os caiçaras moravam perto do mar. Viu a criação de casas espaçosas com gramados aparados e vegetação impessoal dominando a orla. “A primeira vez que vim pra cá eu tinha uns 16, 17 anos. A onda aqui era mais tubular. Eu dropava umas ondas grandes só pra ver aquele negócio fechando, imagina! Quebrava a prancha, mas só de ver essa serra colada aqui...”, lembra. “Aqui é a serra no mar, e não Serra do Mar.” Indagado sobre a última vez que sentiu o gosto salgado da água, responde: “Graças a Deus foi ontem, cara. Tinha dois metros de onda”.

E o apelido “Fredê”, de onde vem? “Antigamente existia um jeito polido de dizer ‘vá se foder’ que era ‘vá bundar com Frederico’. Eu tava jogando futebol e tinha um moleque folgado, já tinha dado uma nele. Uma hora, ele pá! [bate com a mão direita fechada na esquerda espalmada] Virou um ‘porra’, ‘caralho’... e ele falou ‘vai bundar com Frederico’. Eu falei: ‘O quê?’. E parti pra cima. A galera achou que eu fiquei bravo com o Frederico. Sabe como é moleque, né? Frederico, Frederico... Virei o Fredê até hoje.”

Muito mais que uma onda

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Dane Reynolds, o surfista mais empolgante em atividade no mundo, tornou-se quase um herói ao abrir mão das competições e caminhar na contramão

Dane Reynolds redefiniu o surf no século XXI. Unindo um revolucionário jogo aéreo a doses igualmente brutais e ambíguas de força, fluidez, abandono e espontaneidade sobre uma prancha, o californiano é hoje o surfista mais talentoso do mundo. Palavra do supercampeão Kelly Slater. O brilhantismo de Dane não se mede pelo número de manobras que traz em seu repertório ou pelo histórico no cenário competitivo. Sua grandeza está no conjunto da obra. Nas linhas que escolhe para desenhar paredes líquidas. Na agressividade crua com que destrói seções ou as sobrevoa. No estilo imprevisível que transborda radicalidade poética.

Assistir a Dane surfar é como ver um artista em seu apogeu. É descobrir que a perfeição existe da maneira mais imperfeita e improvável possível. Em terra, ele é quieto e modesto, quase misterioso. Avesso aos holofotes, quando não tem para onde correr – em um campeonato ou grande evento – não esconde o desconforto. Não que seja inseguro: Dane simplesmente preferia estar em outro lugar.

Suas entrevistas são sempre uma incógnita – às vezes, reveladoras, outras vezes, enigmáticas. Três anos atrás, no Havaí, perguntei se ele sonhava com o título mundial. Depois de uma longa pausa, respondeu: “Vamos surfar, parece que o mar melhorou”. E assim terminou a conversa: fomos para a água e nunca voltamos ao assunto.

 

“Rankings e troféus significam pouco para mim. Quero aprender, quero fazer coisas, coisas com um propósito”

 

Meses depois, tive a resposta: o sucessor natural de Slater anunciou que não almejava o mesmo destino. Tornar-se um dos maiores ícones do esporte em todo o mundo não era pra ele. Remando contra a maré, aos 26 anos de idade, Dane disse chega. A notícia que sacudiu o mundo do surf, pouco mais de um ano atrás, veio na forma de uma carta publicada em seu blog. Honesto e corajoso, seu texto “Declaration of Independence” (declaração de independência) explicava, em 1.600 palavras, por que ele decidiu largar as competições e seguir seu próprio caminho. Apesar de privada de letras maiúsculas e com pontuação duvidosa, a carta é articulada e reveladora.

“venho sendo pressionado por várias pessoas e pela imprensa a escrever algo como um pronunciamento oficial sobre minha saída do circuito mundial. Minha arregada. Minha pirueta. (...) três marcas me apoiam e me permitem surfar todos os dias e viajar e comer e ter uma casa para morar. Em troca as represento de uma maneira positiva. (...) ao aceitar seu apoio eu assumo certa responsabilidade. Alguns pensam que essa responsabilidade é competir. É colocar uma lycra de competição e destruir meus adversários. Mesmo que seja através de um critério inconsistente e unidimensional onde o resultado raramente está ligado apenas à performance. Talvez esse seja o apelo. Eu não sei. Eu até gosto de competir. Mas será que acredito na competição? O suficiente para dedicar uma grande parte de minha vida para isso? (...) aventura acima da responsabilidade. Suicídio de carreira! Potencial desperdiçado. Talento jogado fora. Eu sei o que vão dizer. (...) mas rankings e troféus significam pouco para mim. Quero aprender, quero fazer coisas, coisas com um propósito, quero ser produtivo. Viajar. Novas experiências. Novas sensações. E, principalmente, explorar os limites do surf de alta performance. (...) este pode ser o fim de um candidato ao título mundial. Mas é também um recomeço.”

Se por um lado sua inédita declaração de independência foi duramente criticada por parte da imprensa especializada – que o acusou de ser um preguiçoso hipster que só queria mamar nas tetas da indústria sem assumir sua responsabilidade de atleta –, por outro, Dane tornou-se herói instantâneo para milhares de fãs em todo o mundo. Afinal, não há nada mais atraente do que um rebelde sábio e desinteressado. Ao virar as costas para as competições, a fábrica de ídolos programados para vender bermudas, Dane virou o surfista dos surfistas. Um cara anti establishment. Anticomercialismo. Anti-status quo. Um herói do underground. Um surfista de verdade.

Sua atitude genuína e indomável, unida a seu surf espontâneo e criativo, transformaram-no em um dos maiores ídolos que o surf já viu. E ele nunca venceu um campeonato. No fundo, Dane é apenas um homem de talento excepcional que preferiu conduzir a carreira de uma maneira diferente. E, se conseguiu que seus patrocinadores o apoiassem nessa empreitada, isso por si já é um feito que não anula o raciocínio que o levou a desistir das competições. Ao contrário: sua posição financeira privilegiada (especula-se que seu salário supere US$ 1 milhão por ano) lhe proporciona um escopo bem mais amplo de possibilidades. O que haveria de errado nisso?

Atualmente, Dane abre uma trilha virgem para surfistas profissionais. Diferente de qualquer freesurfer pago para produzir fotos e vídeos, sem competir, ele não segue uma rotina frenética de eterno viajante. O freesurfer comum vive em busca da onda perfeita em paraísos longínquos e exóticos – sempre com a obrigação de retornar com conteúdo para seu patrocinador – e dificilmente passa mais de duas semanas no mesmo lugar.

Dane repudiou tudo isso. Ele preza sua rotina tranquila na Califórnia, gosta da comida caseira da namorada e de longos passeios com seus três cachorros. Seu profundo conhecimento da costa de sua cidade natal, Ventura, permite que fique em casa e mesmo assim surfe muito. Poucos surfistas locais possuem um entendimento tão extenso sobre qual combinação de maré, ondulação e vento transformará uma onda ruim num tubo perfeito. Dane é mestre em decifrar essas nuances.

Não fosse pelos vídeos publicados quinzenalmente em seu blog, aguardados pelo mundo do surf como último capítulo de novela, ninguém saberia que o surf mais contemporâneo do planeta está acontecendo longe dos holofotes, numa pacata cidadezinha da Califórnia.“Dane pode não agradar a todos no mundo do surf”, explica o talentoso fotógrafo Morgan Maasen, seu amigo. “Mas encontrou um caminho próspero e confortável que alimenta a alma e dá sentido a sua vida. Isso é mais importante do que qualquer título mundial.”

*Steven Allain é diretor editorial da revista Hardcore

Vai lá: www.marinelayerproductions.com



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